Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

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O bilhete

A noite lhe tecia a pele. Contornava seus contornos com ânsia sôfrega e doentia. Ela perambulava. Seu cabelo tempestuoso. Tempestade em seus cabelos. Como se estivesse em queda livre. Ela estava em queda livre.

Seus olhos diziam: CANSADA.

Seus olhos diziam: VAZIA.

Seus olhos diziam: ÚLTIMA CHANCE.

Tinha uma habilidade: escapar ilesa. Assim sobrevivia. Assim sobrevivera. Acusada de todos os crimes. Culpada de alguns. Preparadora de outros.

Nessa noite, caminhava, desproporcional. Colocou a mão no bolso. Havia um bilhete.

O bilhete dizia: VOCÊ PERDEU SUA VEZ.

O bilhete dizia: CHEGA DE SE PRENDER AO PASSADO.

O bilhete dizia: ESQUEÇA O MALDITO PASSADO.

Era sua letra. Seus “as” falhos, trépidos. Longas pernas nos “es”. As outras letras cuidadosamente diagramadas. Sua letra. Seu bilhete. Sua sentença. Autossentença. Como textos reflexivos e ternas condenações. Caminhava. Logo, seus pés a levaram às margens de um rio calmo que dançava sob a luz do luar. Jogando sua lua refletida pra cá e pra lá. As pequenas ondas bifurcavam o reflexo da lua. Dividindo-a. Sulcando-a. A lua que sempre a acompanhara, agora a rimava em novos versos.

Amassou o bilhete e o arremessou ao rimo.

Ainda o viu mergulhar na lua bipartida.

Seus olhos diziam: CANSADA.

Seus olhos diziam: VAZIA.

Seus olhos diziam: MAIS UMA CHANCE.

O ÚLTIMO DIA DE VIDA DE LEVI ANTUNES – Parte III

– Quando eu era criança, eu tinha um sonho: salvar o mundo.

Laura se sentiu melhor ao ser trazido à sua atenção, o fato de que aquela estranha figura, um dia, já fora uma criança. Por pouco tempo, afinal. Perdera a infância antes que pudesse começar a desfrutá-la. Antes que pudesse se entender, se definir, existir e coexistir. Perdera os pais num incêndio. Dali, uma criança traumatizada. Medo de tudo, e do nada. Dificuldade em se relacionar. Queimaduras em todo o corpo. Queimaduras em cada desejo. Desde então, tinha pesadelos recorrentes. Sempre incêndios. Fogo. Sua camiseta branca amalgamando-se com a pele frita. A fumaça cinza da sua carne lhe vedando as narinas. Ele buscara por ar naquele dia, como o buscara em cada dia vivido desde então.

– Para uma criança, tudo pode ser resolvido. Tudo será resolvido. Até que o mundo resolve nos mostrar sua verdadeira face. E os super-heróis voltam para os quadrinhos. – Era quase um homem poético, mas no fim, era apenas um homem atormentado. – Qual o seu maior medo? – perguntou, do nada.

Laura olhou ao redor. Uma lanchonete. Mesa para dois. Um sanduíche para cada. O que estava fazendo ali, afinal? Respirou.

– Acho que o medo da maioria das pessoas. Medo de não ser feliz, de não realizar meus sonhos.

– Eles estão interligados?

– Eles?

– O sonho e a felicidade.

– Sim, acho que sim. Acho que são uma coisa só.

– Tem medo da morte?

– Quem não tem?

Ele sorriu. Um sorriso estranho. Tudo o que vinha dele era estranho.

Ela:

– Você falou que sonhou com o incêndio. Mas não era exatamente esse incêndio, era?

– Faz diferença?

– Você disse que sempre tem pesadelos desde que seus pais…

– Você estava no sonho.

– Eu?

– Não era você, exatamente. Mas era você. – Ele deu uma pausa. Olhou ao redor. Na verdade, olhava para si mesmo. – No dia do incêndio, em que perdi meus pais, fui arrancado de dentro da casa por um bombeiro. Eu não me lembro do rosto dele. Nem sei se usava capacete, se tinha barba, não me lembro sequer se era homem. A única coisa que me lembro era de uma garota, no meio da multidão do lado de fora, que nos olhava. Me olhava. Devia ter minha idade. Era loira como você. Tinha olhos claros como o seu. E parecia assustada, como você. Desde então, passei a ter pesadelos com incêndios, e garota sempre está lá. Sempre. Até hoje. Como se quisesse me ajudar. Como se quisesse fazer toda a diferença. – Ele parou. Talvez, lágrimas em seus olhos. Talvez… – Você não é exatamente a garota do sonho, mas… eu sei que é você.

– Eu não posso salvar ninguém. Não consegui salvar ninguém hoje.

– O que você poderia fazer afinal?

– Eu não sei.

– A gente sempre tenta se perdoar. É uma reação natural, uma defesa. Quem não se perdoa, se apaga de uma vez.

– Eu também sonhei com esse incêndio essa noite.

– Esse?

– Sim. O incêndio no shopping.

– Milhões de pessoas sonharam com incêndio essa noite. Outras com maremotos, ou terremotos. Algumas sonharam que tinham superpoderes, que ganharam na loteria, que eram meio gente, meio animal.

– Só uma coincidência?

– Como tantas outras que ainda teremos de encarar.

Ficaram em silêncio. Observando-se mutuamente. De repente, ele, Levi, já não era tão assustador. Talvez fosse apenas o assustado. A criança que acorda dum pesadelo, e se descobre sozinha num quarto escuro, sem coragem de levantar, ou de chamar pelos pais. Talvez ele fosse como ela, e estivesse apenas a procura de um pouco de ar para respirar. Agora, ela sabia, não havia o que temer.

Então, de forma espontânea, Laura lhe sorriu.

Quando viu aquele sorriso, Levi pensou: Ainda há belezas nesse mundo a espera de serem descobertas.

Depois de se despedirem, Levi voltou ao apartamento onde morava. O ar estagnado ali dentro fê-lo enjoar. Caminhou até seu quarto. Um caminho longo para uma vida tão curta. A carta de despedida estava ali. Repousava. Olhava para ele, abria os braços e perguntava: E agora, Levi, o que você fará? Pensou em Laura. Pensou no seu sorriso – o mais lindo que já vira em sua vida. Pensou no ar que sentira entrar em seus pulmões. Talvez devesse dar um tempo para que o universo lhe brindasse alguma saída. Alguma opção. Sabia muito bem que não fora assim que esse conto começara. Não era assim que deveria terminar. Mas ele era livre, e tomaria as suas próprias decisões.

Voltou a se olhar no espelho.

Experimentou um sorriso.

Gostou do que viu.

E arrematou:

– Daqui pra frente é comigo!

F I M

O ÚLTIMO DIA DE VIDA DE LEVI ANTUNES – Parte II

“A quem encontrar essa carta…

Está ouvindo isso? Silêncio. Preste atenção. Está ouvindo isso? Não? Eu sei que não. Eu também nunca ouvi. Refiro-me às batidas do meu coração. Você sabe o que é viver 30 anos sem ouvir as batidas do seu próprio coração? Eu sei que não. Se soubesse, não estaria aqui, lendo essa carta, e pensando: “Pobre infeliz”. Então, tente não me julgar. Se eu tivesse sua vida, seus sonhos, seu cheiro, eu não teria feito o que fiz. Não é difícil de imaginar, se você tentar. Faço minhas as palavras do poeta Paulo Lucká:

Salve esse poeta por ter sido tão estúpido
Por ter acreditado que algum dia seria feliz
Salve sua poesia, pois ela o levará ao túmulo
Assim como fará com todos os que traíram o amor.

Se eu tivesse seu rosto, suas roupas, sua esposa, eu não teria feito o que fiz. Quando as portas se fecham e a brisa se recusa a entrar, então, nessa hora, todas as sensações desaparecem, e tudo se torna um perigoso “tanto faz”. Aí qualquer coisa pode começar ou acabar que… tanto faz. Se eu tivesse seus pais, seus filhos, seus medos, eu não teria feito o que fiz. E não é que seja tarde para mudar de ideia. É que é simplesmente tarde para tentar querer recomeçar tudo outra vez. É nessas horas que a plateia se posiciona para levantar, certa de que as luzes irão acender. Deveria eu decepcioná-la?

Se eu tivesse metade do que você tem, eu não teria feito o que fiz.

Então, faça-me um favor: largue essa carta, e volte para as pessoas que ama. E faça com que a vida delas valha a pena.

Levi”

Era apenas o retrato da desolação. Estava curvado. Um moribundo. A carta ainda em mãos. Olhou-se no espelho. Olheiras, rugas, manchas, pele que se desprendia do seu rosto. A carta em mãos. Tremia.

Ele soltou a carta no momento em que ouviu as sirenes das ambulâncias e dos bombeiros passando em disparada. Ergueu os olhos marejados de lágrimas – seriam suas últimas lágrimas –, e viu as chamas no horizonte. O fogo. O mesmo que deixara marcas no seu corpo quando criança. O mesmo que tirara a vida de seus pais. O mesmo vilão acendia agora aos céus numa dança amedrontadora. Desenhando as formas assassinas com que sonhara os últimos 25 anos. O fogo rebolava ao sabor do vento. Era contornado pela fumaça. Envolvido. Adornado. Maldito fogo. Ele viu mãos. As mãos do fogo, chamando-o. Parecia convidá-lo: “Venha para cá. Sentiu minha falta?”.

Levi Antunes soltou a lâmina que tinha em mãos.

Dois minutos depois corria, insano, em direção ao incêndio.

E meia hora depois, conheceria a garota que viria a salvar a sua vida.

– Conheço esse fedor.

Laura mal ouviu. Eram muitas vozes. Na verdade, a maioria, gritos. Pessoas correndo. Algumas para longe do incêndio. Outras se aproximando. Curiosos. Ela, como hoje de manhã: suor e lágrimas. Exatamente igual. Mas estava de pé. Porém, desta feita, o medo não se dissipava. Pior assim.

A voz lúgubre ao lado continuava:

– É cheiro de carne.

Ela olhou para o lado. A forma esguia tinha um cabelo ralo e preto. Escorrido sobre o rosto. Suava, como ela. Um nariz adunco. O rosto fino. Vestia preto. Parecia um corvo. Da cabeça aos pés. Foi o que ela pensou. Ele olhou para ela. Um olhar estranho. Um corvo psicótico, algo assim. Laura sentiu medo daqueles olhos. Olhos vazios. Como buracos negros, a sugavam. Ele tinha assustadores olhos vazios.

– Escapou ilesa?

Ela concordou com a cabeça.

– Bom para você. – Ele sorriu. Sorriso malévolo. – Já eu não tive a mesma sorte.

Laura desviou os olhos. Começou a se afastar quando a figura disse as palavras que a fizeram voltar-se para ele:

– Eu sonhei com esse incêndio noite passada.

Continua:

O último dia de vida de Levi Antunes – Parte I

Quando sentiu seu corpo se inclinando, percebeu que era apenas o começo do fim do poço.

Sua carne tremia no flagelo. Seu suor parecia dançar sob a luz do luar. Ele parecia. Ele focava. Ele suava. O que pôs, depôs. Era a tortura. Sua tortura pessoal. Álcool e drogas. Alma e seu destoar. Como se o fim pudesse ser retumbado numa nova canção. Uma adaptação. Um reencontro qualquer. Mas não. Era mesmo o fim. Não o mesmo fim. Mas o fim do fim. Para tudo, um acorde. Para cada canção, um final trágico. Era o fim. Ajoelhado, tocou-se, como se pudesse dele extrair sua história. Como se pudesse voltar no tempo – tempo ingrato – e corrigir sua postura. Sua tontura. Sua ternura. Mas era apenas pedaços disso ou daquilo. Saliva. Sangue. Suor. E os restos. Voltou-se para o espelho e disse aquilo que ninguém nunca jamais saberia: “Daqui pra frente é comigo”.

Mas não era mais com ele. Ele era não mais que uma personagem de textos reflexivos.

Dali pra frente, era só um cadáver e uma carta de adeus.

Era exatamente como no seu sonho. Assustadoramente igual. O pesadelo de Laura. Sonhara com o incêndio naquela noite. Daquela forma. Aquela proporção. O cheiro. As formas. A intensidade. A fumaça negra se formando ao seu redor. No sonho, ela corria para a porta. Viu as multidões correndo desnorteadas. Ignorando as placas que diziam e repetiam: Saída de Incêndio. O desespero bloqueia os sentidos. E as pessoas seguem umas às outras. Se alguém corre para dentro do fogo, todos vão atrás. Sentidos bloqueados. Esses são os fatos. Os tristes fatos. Mas no seu caso, Laura tinha uma grande vantagem sobre todos.
Ela sonhara com o incêndio.

No dia deste pesadelo, acordara entre suor e lágrimas. Nunca se lembrava dos seus sonhos. Apenas dos pesadelos. E com uma nitidez assustadora. Era capaz de citar detalhes de cada pesadelo: a cor dos olhos do monstro, a tonalidade da língua da cobra, o inseto morto no para-brisas do caminhão avançando sobre ela. Detalhes avassaladores. Detalhes que intensificam o medo.

Sentada na cama. Chorava. Suor. Seus olhos ardiam. Melhor não ir trabalhar. Levantou-se, trôpega. Um banho. Um café. E pensou melhor. A intensidade do medo desaparecera. A cama amedronta as pessoas, concluiu. De pé, o sangue circula melhor. Os pensamentos se reposicionam. O medo se dissipa. De pé, pensou: Melhor ir trabalhar.

A mão em seu ombro é seu medo lhe afagando.

Não há nada aqui, pensou. Apenas o mesmo shopping de todos os dias. Todos os dias. Sempre a mesma repetição. Repetições dão segurança. Solo firme, muitos pensam. Quando algo está diferente, a estranheza desloca os sentidos. Estranheza transforma cada solo em gelo fino.

Laura observou cada detalhe do shopping antes de colocar seus pés ali dentro. Algo diferente? Algo fora do lugar? Ao menos uma estranha sensação? Nada. Absolutamente nada. Vidas vazias indo e vindo. Músicas vazias preenchendo as vitrines cuidadosamente decoradas. O cheiro de novo impregnando os vastos e insignificantes centímetros cúbicos. Onde é o meu lugar? Respirou fundo. Não há nada aqui. Então, por que hesitar? Deu um passo, dois, três.

Enfim, estava dentro.

11h00. Sorria normalmente, como normalmente fazia. Um sorriso, uma máscara. Os sapatos da loja não se vendiam, tão-somente. Seu sorriso era parte essencial do negócio. Não era uma garota linda. Mas tinha um sorriso cativante. Espetacular. Um pedido e um sorriso, e conquistava o que queria. Curvem-se… e o sorriso. Eles se curvavam. Ela estava ciente do poder. Não lhe poderiam tirar esse poder. Exceto o medo. Esqueça o medo. Sorria. E sorriu.

Outra venda efetuada.

Não foi o cheiro de fumaça. Nem o clarão do fogo. Tampouco o grito das pessoas. O que a fez lembrar do pesadelo foi o alarme contra incêndio.

Ela sorria ao dizer o preço de um salto alto, quando ouviu o alarme invadir a loja e retumbar suas cócleas. O alarme do shopping despertou seu alarme interno. O sonho. O incêndio. Tão real. Era verdade.

Em situações assim, as pessoas reagem da mesma forma: primeiro se entreolham, e perguntam umas às outras – O que é isso? A cliente lhe encarava. Laura, diferentemente, manteve olhos fixos lá fora. Os corredores. Escada rolante. Elevador. Pense, pense. No sonho, ela corria na direção oposta à debandada dos desesperados.

– O que é isso? – perguntavam funcionários e clientes ao redor.

Laura. Em silêncio. A porta. Pessoas passando da direita para a esquerda. Andando. Ainda não perceberam a gravidade da situação. Então ela sentiu o cheiro de queimado. O incêndio. Real. Não acordaria na sua cama suando e chorando. Dessa vez, era pra valer. Pessoas passando em frente à porta. Da direita pra esquerda. Primeiro andando. Com o cheiro da fumaça, com a fumaça dando as caras, começam a correr. Gritos. Laura, pensando, ouve gritos. Pessoas correndo. Passam em frente a loja. Buscam a saída. A saída fica naquela direção. Mas a fumaça vem justamente de lá. O cheiro de roupa, couro, e carne queimada também. Muitos gritos. Fumaça densa. A saída de incêndio fica para o outro lado. Outro lado, Laura. Outro lado. Como no sonho.

Corra. Corra.

AGORA!!!

Ela dispara pela porta. A pior parte. Enfrentar a debandada. Todos correm para a mesma direção. Como pensara: se um vai em direção ao fogo, todos vão atrás. Ela tenta avisar a todos. Grita sobre a saída de incêndio. Ninguém a ouve. Pessoas não ouvem nessas situações. Não conseguem ouvir, pensar, raciocinar. Morrem por essa razão. Ficam como animais assustados. Não sabem para onde ir. Por isso seguem umas às outras. Laura grita. Se esforça. Luta para andar na contramão. Aos poucos, as centenas de pessoas desaparecem da sua frente, mergulhando fundo no incêndio cada vez mais intenso. Bombeiros. Ela ouve o som de bombeiros. O cheiro de carne queimada é desesperadamente forte. Como no sonho. Quem disse que em sonhos não se sente cheiros? Ao menos nos pesadelos, sim, pensou.

Da saída de incêndio para a rua, foram alguns lances de escada. Lançou-se abaixo. Passos desesperados e desordenados. No caminho, encontrou bombeiros. Estou bem, estou bem. Lá embaixo, outros bombeiros, paramédicos, ou seja lá o que, lhe fizeram perguntas. Ela não ouvia direito. Por isso só repetia o que sabia: estava bem. Lá fora, foi conduzida para uma ambulância. Queimadura? Inalou muita fumaça? Não, não. Estou bem.

Nessa hora, olhou para trás. E só então viu a proporção do que ocorrera.

O shopping inteiro era engolido pelas chamas.

Continua:

Ensaio sobre esboços

Teria composto traços de tua plenitude
Esboçado planos, esboços planejados
Teria sondado as regras de tua voz
E das frações de teu fulgor
Desenharia a melodia que ecoas
No momento em que passas
No instante em que pairas
Por aqui, por ali, pelo ar
E com cada tua iminência
Reter-te numa eterna sequência.

DIÁLOGOS FILOALCOÓLICOS DE LUCKÁ E MESSINA – III

Tirinhas Engraçadas

A frase

Os vendedores se espremiam na sala pouco ventilada. Quem eram? Apenas 12 almas cansadas e mal pagas. A motivação já lhes fora, outrora, uma força dominante. Hoje, a motivação era apenas uma lembrança distante de algo que haviam experimentado.

Por isso, aquela reunião não lhes parecia objetiva. O anúncio havia sido dado no dia anterior: os vendedores deveriam estar presentes na Sala de Treinamentos, logo após às 18h00 para uma palestra motivacional.

Mais uma?, alguém perguntara, em protesto. Nunca tivemos palestras motivacionais, outro em resposta.

Descontentamento e protestos de nada adiantaram. Ali estavam as 12 pessoas cansadas, ansiosas para que toda aquela cena acabasse logo e pudessem ir para casa.

Precisamente às 18h00, a porta da Sala de Treinamentos se abriu. Os burburinhos e conversas inúteis que haviam ali, cessaram. A porta rangeu (faltava-lhe óleo como lhes faltava paixão).

Calmamente, uma estranha figura entrou. O corpo arqueado. Cabelos ralos e brancos se escondendo atrás da cabeça abarrotada de rugas. Trêmulo como um pêndulo. Caminhava, quase se arrastava. Um homem velho, em silêncio. Tomou sua posição em frente ao enorme quadro. Olhou para os 12 discípulos, esperou quinze segundos para recuperar o fôlego e passou a falar.

Era uma espécie de guru. Um conselheiro. Dava palestras motivacionais em centenas de empresas pelo país. Nunca andava de carro, avião, moto ou bicicleta. Cruzara o país, sempre a pé. Máquina melhor que minhas pernas, dizia, ainda não criaram. Sua alimentação resumia-se apenas a pão, água e frutas. Dormia sobre um pedaço de estopa de linho, apenas para forrar o chão. E afirmava estar com 120 anos. Vivia assim desde os seus vinte e poucos. O que o levara a essa vida de abstinência fora uma frase dita por um mestre seu, quase 100 anos atrás. Uma única frase que o tirara do materialismo e o levara para essa vida de abstenção e redenção. E era essa a frase que ele tinha a dizer aos 12 vendedores naquela sala, frase esta que mudara sua vida, e que mudaria a vida deles também.

Quando abriu a boca para enunciar a miraculosa expressão, arregalou os olhos que ficaram congelados diante da dor que se espalhava em seu peito. Antes mesmo de fechar os olhos, o velho desabou. Gritaria, correria, pedidos de socorro. Mas era tarde. O velho infartara, ali mesmo, no meio de sua palestra.

Algumas pessoas na empresa ficaram em choque, ao ver o corpo sendo conduzido para fora. Outras choravam. A maioria, sem palavras. Mas os 12 vendedores se entreolhavam e pareciam muito aliviados.

Afinal, se aquela frase induziu o velho a ter tal vida de extrema restrição, graças a Deus que ele enfartou antes de pronunciá-la.

Os antissociais I

— Alô?
— E aí?
— Fala, grande.
— Que tá fazendo?
— Nada. Debaixo das cobertas.
— Hum. Sei.
— E você?
— Na mesma.
— Um saco, hein!
— Pois é. Liguei pra isso.
— Isso o quê?
— Ah, sei lá. Esse tédio.
— Pra variar né?
— Vontade acabar com isso tudo.
— Isso tudo o quê?
— Com esse tédio, cara.
— Vá ler um livro.
— Outro?
— É, um saco!
— E como! Já foram três essa semana!
— Poxa.
— Tá a fim de sair?
— Nem. Pra onde?
— A festa da facul.
— Ah, nem vou. Tô debaixo das cobertas.
— Só sair daí.
— Nem. Só saio daqui amanhã cedo.
— Eu tô a fim de ir.
— Você vai?
— Não disse que vou. Disse que estou com vontade.
— Mas você vai?
— Ah, sei lá.
— Fazer o que lá, cara?
— Fazer o que aqui?
— Vá ler um livro.
— Você não se incomoda com isso?
— Isso o quê?
— Ficar dias e dias enfiado nesse quarto. Você é um ser humano ou uma ameba?
— Ó quem fala.
— É disso que estou falando.
— Eu não sou uma ameba.
— Amebas são mais sociáveis, isso sim.
— São?
— Devem ser. São mais populares que nós, pelo menos.
— Se são. Você vai?
— Pensando. Dá medo.
— E eu não sei?
— Vai ter muita gente estranha lá.
— E como! Você vai?
— Se você for, eu vou.
— Eu não vou.
— Por que não?
— Nem a pau. Muita gente. Gente estranha.
— A gente se enturma.
— Certeza?
— Bom, acho que não. Mas a gente tenta, pelo menos.
— A gente tentou ano passado, lembra?
— É.
— Não deu em nada.
— É.
— Os dois largadões lá no meio sem saber o que fazer.
— É.
— Olhando um para a cara do outro. No mesmo lugar durante duas horas.
— Se ao menos a gente soubesse dançar.
— E quem ia querer dançar com a gente?
— Pior. Fiascaço.
— E como!
— Melhor deixar essa ideia pra lá, né?
— Melhor mesmo.
— Mas, o que eu faço nessa porcaria de sábado?
— Ah, sei lá. Faça o mesmo que eu.
— OK.
Desligou, e foi ler um livro.
Um saco!

Diário de Manolo DDA I

Crônica humorística – Diário de Manolo DDA

Diário de Manolo DDA - Crônica Humorística

Infame Diário,

Hoje é quarta-feira, um pós-feriado. Não precisa ser um gênio pra perceber que isso me desanima. Meu humor já denuncia isso. Mau humor, ressalvo. E o que esperar de pós-feriados que sempre começam com a mesma perspectiva das segundas-feiras: uma semana inteira (ou o restante dela) de encheção?

Se você, bastardo diário, acha que sou um reclamão exagerado, deixe-me contar-lhe um pouco dessa quarta-feira que eu prefiro rotular como fossa.

Não acordei legal. Dores nas costas por causa da minha lordose. Ou seria cifose? Tem hipercifose também, não tem? Depois vou conferir no Aurélio. Eu sempre confundo esses prefixos. Vou me concentrar nos sufixos, então. Neles, eu me garanto. Minha “ose” me incomodava pela manhã. Levantei, tomei café e saí de casa. Ali já percebi que havia algo de errado. Toda aquela aglomeração. E eu assustado. O terapeuta psicótico diz que isso é síndrome do pânico. Tá bom.

Mas o pior estava por vir, patético Diário. Dentro do ônibus, a pior coisa com que já me deparei. A propósito, por que sempre te chamo de Diário com maiúscula? Viu? De novo! Que porcaria.

Onde eu estava? Ah, o ônibus. Aglomeração. Falta de ar. E então aconteceu. Aquela visão dos infernos. Era… era… o que era mesmo? Recapitulando. Eu entrei no metrô. Estava lotado. Ou não estava? Vamos tentar de novo. Vou até abrir um novo parágrafo para facilitar o fluxo de ideias.

Eu entrei no avião. Estava vazio e eu me sentia a vontade. Livre, leve, senhor de mim mesmo. Ali tive a impressão de que essa quarta-feira seria um ótimo dia. E não me enganei.

Afinal, eu nunca me engano, queridíssimo Diário.

DDA é a mãe!

Quando se olha no espelho, você só repara nessa carapaça decadente que envolve seus músculos e órgãos desgastados, ou vai além?

Vou lhe dizer o que faço. Olho para meu rosto. Tá lá. No espelho do meu quarto. O que há atrás do olhar lânguido, das olheiras, da pele ressequida e cansada de tantas inúteis primaveras? Lá se esconde o lobo frontal. Controla minhas ações, meus movimentos, a estratégia. Se vou adiante, um passo atrás ou se devo fincar os pés aqui. É o grande responsável. Por vezes, o grande culpado. Investi em poupança em vez de em debêntures? Péssimo investimento? Maldito lobo frontal.

DDA é a Mãe - Crônica Humorística

Os lobos occipitais me fazem delirar. Estímulos visuais e essa coisa toda. Pegam aquela matéria monumental e entalham em minha memória. Sabe aquela loira, os cabelos revoltosos ao vento, seu caminhar como a dança de uma bailarina sob doce sinfonia? Pois é, que loira! Bendito occipital!

Há os temporais, também. E os parietais. Isso tudo junto pesa 2% do meu corpo. Mas recebe 25% do sangue que é bombeado pelo coração. Funciona a contento. Estou convencido que sim. Mas nem todos. Nem todos, eu digo. E reafirmo.

Meu terapeuta não vai com minha cara. Com a carapaça, digo. E, por extensão, nem com meus lobos. Tem sempre uma doença pronta para me presentear. Parece carregar algumas na manga. Eu chego lá, digo algo e ele saca alguma disfunção tão rápido quanto John Wayne sacava uma pistola. Psicopatologias. Não estou feliz com minha carapaça, e ele diz que tenho transtorno dismórfico corporal. Me atrapalho numa leitura qualquer, e tenho dislexia. Invejo alguma habilidade animal, e ele vem com licantropia clínica.

E a última foi culpa da carteira. Na verdade, culpa da minha distração. Distração não é doença. Ou é, e eu perdi metade do filme? Onde está a carteira, eu me perguntava. Nem cá, nem ali, nem lá. Desisto. Fui ver, dentro da geladeira. Que maravilha! Contei pro tragicômico – que ideia a minha também! – e o que ele disse?

– Você tem DDA.

– Quem?

– DDA: Distúrbio do Déficit de Atenção Sem Hiperatividade.

Pronto! Coloco a carteira na geladeira por distração, e tenho essa tal DDA. Era o que faltava. Mas até que saiu barato. Do jeito como ele me soma patologias, foi milagre me diagnosticar “SEM hiperatividade”. Tá certo que não foi exatamente um incidente isolado. Já coloquei sorvete no micro-ondas. E sou incapaz de manter uma conversa por dois minutos sem me distrair. Mas sou um homem muito ocupado. Milhões de coisas na cabeça. Turbilhões. Estresse. Essas coisas. Isso não é doença. Isso é falta de praia. Isso é falta de…

Onde eu estava?

Ah, eu falava da garota. Rebeca. Que nome! Não dá pra ter um nome desses e não ser monumental. Um metro e setenta. Cabelos vastos e esvoaçantes. Olhos grandes e magnetizantes. Nos olhos dela, corre um letreiro: “Eu Sei Que Seus Occipitais Estão Atordoados”. E como estão, baby! E como estão!

Jantar, eu e ela. Tremo. Quem não tremeria? Até a chama da vela sobre a mesa é trêmula. Mas meu terapeuta diz ser fobia social. É mesmo um fanfarrão! Ela estende a mão sobre a mesa. Não toca a minha. Estende a mão e olha ao redor. Espera que eu tome a iniciativa. Isso se chama “charme”. Eu? Bem, felicidade em cada poro. Quem não estaria? Mas o terapeuta me alertou:

– Felicidade tem de ter os pés no chão, Manolo. Felicidade sem razão aparente é um dedo no gatilho.

Distúrbio bipolar. É o que ele diz. Se é invadido por alegrias sem razão, é bipolar. Terapeuta chato. Mas não é esse o meu caso, obviamente.

Que caso?

Enfim, onde eu estava?

Ah, a receita.

É preciso primeiramente fritar o camarão e então deixar escorrer. Após isso, refogue em fogo alto com cebolinha e gengibre. Depois é só servir.

Como? Eu não lhe falei sobre a receita de camarão? No que você estava pensando na última meia hora que gastei dois litros de saliva lhe ensinando essa receita centenária de minha família?

A propósito, quem é você?


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