“A quem encontrar essa carta…

Está ouvindo isso? Silêncio. Preste atenção. Está ouvindo isso? Não? Eu sei que não. Eu também nunca ouvi. Refiro-me às batidas do meu coração. Você sabe o que é viver 30 anos sem ouvir as batidas do seu próprio coração? Eu sei que não. Se soubesse, não estaria aqui, lendo essa carta, e pensando: “Pobre infeliz”. Então, tente não me julgar. Se eu tivesse sua vida, seus sonhos, seu cheiro, eu não teria feito o que fiz. Não é difícil de imaginar, se você tentar. Faço minhas as palavras do poeta Paulo Lucká:

Salve esse poeta por ter sido tão estúpido
Por ter acreditado que algum dia seria feliz
Salve sua poesia, pois ela o levará ao túmulo
Assim como fará com todos os que traíram o amor.

Se eu tivesse seu rosto, suas roupas, sua esposa, eu não teria feito o que fiz. Quando as portas se fecham e a brisa se recusa a entrar, então, nessa hora, todas as sensações desaparecem, e tudo se torna um perigoso “tanto faz”. Aí qualquer coisa pode começar ou acabar que… tanto faz. Se eu tivesse seus pais, seus filhos, seus medos, eu não teria feito o que fiz. E não é que seja tarde para mudar de ideia. É que é simplesmente tarde para tentar querer recomeçar tudo outra vez. É nessas horas que a plateia se posiciona para levantar, certa de que as luzes irão acender. Deveria eu decepcioná-la?

Se eu tivesse metade do que você tem, eu não teria feito o que fiz.

Então, faça-me um favor: largue essa carta, e volte para as pessoas que ama. E faça com que a vida delas valha a pena.

Levi”

Era apenas o retrato da desolação. Estava curvado. Um moribundo. A carta ainda em mãos. Olhou-se no espelho. Olheiras, rugas, manchas, pele que se desprendia do seu rosto. A carta em mãos. Tremia.

Ele soltou a carta no momento em que ouviu as sirenes das ambulâncias e dos bombeiros passando em disparada. Ergueu os olhos marejados de lágrimas – seriam suas últimas lágrimas –, e viu as chamas no horizonte. O fogo. O mesmo que deixara marcas no seu corpo quando criança. O mesmo que tirara a vida de seus pais. O mesmo vilão acendia agora aos céus numa dança amedrontadora. Desenhando as formas assassinas com que sonhara os últimos 25 anos. O fogo rebolava ao sabor do vento. Era contornado pela fumaça. Envolvido. Adornado. Maldito fogo. Ele viu mãos. As mãos do fogo, chamando-o. Parecia convidá-lo: “Venha para cá. Sentiu minha falta?”.

Levi Antunes soltou a lâmina que tinha em mãos.

Dois minutos depois corria, insano, em direção ao incêndio.

E meia hora depois, conheceria a garota que viria a salvar a sua vida.

– Conheço esse fedor.

Laura mal ouviu. Eram muitas vozes. Na verdade, a maioria, gritos. Pessoas correndo. Algumas para longe do incêndio. Outras se aproximando. Curiosos. Ela, como hoje de manhã: suor e lágrimas. Exatamente igual. Mas estava de pé. Porém, desta feita, o medo não se dissipava. Pior assim.

A voz lúgubre ao lado continuava:

– É cheiro de carne.

Ela olhou para o lado. A forma esguia tinha um cabelo ralo e preto. Escorrido sobre o rosto. Suava, como ela. Um nariz adunco. O rosto fino. Vestia preto. Parecia um corvo. Da cabeça aos pés. Foi o que ela pensou. Ele olhou para ela. Um olhar estranho. Um corvo psicótico, algo assim. Laura sentiu medo daqueles olhos. Olhos vazios. Como buracos negros, a sugavam. Ele tinha assustadores olhos vazios.

– Escapou ilesa?

Ela concordou com a cabeça.

– Bom para você. – Ele sorriu. Sorriso malévolo. – Já eu não tive a mesma sorte.

Laura desviou os olhos. Começou a se afastar quando a figura disse as palavras que a fizeram voltar-se para ele:

– Eu sonhei com esse incêndio noite passada.

Continua: