Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

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Textos profundos da Literatura Corrosiva

QUEM DISSE QUE QUERO SER POP?

O cara de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante não sou eu. Não sei porque, mas quando ouço Cara Estranho, sinto que o sacana do Camelo está falando de mim. Cabe-me parte dos lucros? Direito de imagem, ainda que imagem escrita? Uma torpe impressão, um dia finito, algo assim.

Nessa onda, vieram os luserianos – o movimento. Termo cunhado pelo contumaz poeta-falido Paulo Lucká. Nascido nos becos dos anos 90, duas figuras curvilíneas e berrantes que mais pareciam a dupla dinâmica Quasimodo e Nosferatus. Luserianos. Losers. Nem tanto quanto parecia. Tínhamos o mundo diante dos nossos olhos. E nos amparávamos na literatura. A revolução.

Quem disse que quero ser pop?

– Vamos deixar John Fante no chão.

– Beatnik será brincadeira de criança.

– Nosso nome ainda figurará em livros de história.

– Não seria, literatura?

– Livros de história tem muito mais impacto.

– Han…

Precisávamos de outros como nós. Parecia fácil. Se for espancado por algum valentão no colégio, garanto que é poeta ou compositor. Abaixaram a calça de um na biblioteca: bem-vindo aos luserianos. Jogaram outro num cesto de lixo: você escreve, garoto? Um tapa na nuca do vesguinho: que tal vomitar toda sua revolta em textos reflexivos?

Cada qual com suas armas. Procurávamos as nossas. Éramos adolescentes. Um fruto ainda por crescer. Talvez se tivéssemos passado mais tempo no Sol, as pessoas seriam capazes de ouvir nossas risadas. Ou talvez, não. Aposto que você não se importa.

Assim nasceram Os Luserianos. Chegamos a 42. Quarenta e duas estranhas figuras que mal sabiam em que direção olhar. Queríamos ser heróis, mas cada um de nós se assemelhava mais aos vilões das histórias em quadrinho. Não construímos nada, efetivamente. Mas construímos o tudo também. Paradoxo insistente. Caos inexistente. Éramos como a Sociedade dos Poetas Mortos. Totalmente mortos, quase poetas, e longe da sociedade.  Nossos escritos compartilhados. Poetas e fãs, amalgamados. “Vou colar sua poesia na porta do meu quarto”. “Cara, me acabo de rir com seus textos humorísticos“. “Vejam a peça de teatro que escrevi”. Éramos jovens. E nos sentíamos vivos.

Na verdade, nunca desejamos estar em livros de história ou literatura. Nem queríamos ser fonte de inspiração para o Los Hermanos. Queríamos apenas a voz. Um grito ecoando pelos flancos e estourando seus tímpanos.

Eu sou uma alma, mas não exatamente um soldado. Não sou o cara que vai chegar e dominar uma conversa. Não sou o cara que vai te tirar pra dançar. Muito menos me esparramar sobre uma cadeira de bar, me espreguiçar e esbravejar para todos ouvirem: “ô vontade cagar”. Deixo isso para os caras de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante.

Me reservo a posição de ser eu. Abstenho-me de transmutações. Não me permito mudar. Nem me permito querer mudar.

Afinal, as pessoas não são merecedoras de tanto.

LADY JANE

O coração da jovem parecia tempestuoso, cálido ao toque das palavras dele, quando ele a chamava pelo nome. Não eram palavras especiais, mas se tornavam especiais quando cruzavam a fronteira do seu órgão muscular, desfilando por entre aurículas e ventrículos. Chamejava com a consistência inconstante daquele ritmado destoar que só deste gosto provaram os que amaram ao menos uma vez.

E com a mesma aguçadura com que lhe infligiam as palavras tocantes, foi-lhe arrancado o ar quando ouviu, da mesma boca, a boca dele, o amor por outra mulher. Sob o rugir tempestuoso das palavras em seus ouvidos, se confundiram a acidez e o destempero. Inerte, calou-se. Calou fundo a verdade que esfriou seu calor. Por ora, fugiu-lhe a vida. O sangue achou que não precisava mais correr. O ar sossegou. O pulmão aquietou. O corpo abjurou.

Lady JaneCaminhou rumo ao nada, embora, estivesse estagnada. A inércia a conduzia. Diluía. Fragmentos de mulher aqui, ali, acolá. Caminhando ao nada, ao nada chegou. E como nada encontrou, continuou. Ainda hoje, vagueia pelas estradas, a procura do seu lugar. Caminha por estradas, pontes, desertos, fronteiras. Mas quem a observa ao longe percebe, pobre mulher, ainda continua parada no mesmo lugar.

Sem Semanas

Assentada, acentuou-se um desejo. Parecia-lhe suave, mas era grave, o acento. Gravidade, queda livre, livre aceitação. Sentiu-se só. Não solidão entre poeira e pó. Não o senso de descontentamento, insensatez no olhar, na tez. Desta vez, apenas uma lacuna na alma, fuga em calma.

Com a face refeita, reconstruída com rímeis e semblantes, mergulhou na noite, tomada pelo cetim que a envolvia, ausente de responsabilidades, contente com possibilidades.

Era a acentuação básica de textos reflexivos, versos ainda esperando encontrar suas rimas. Abastada com pensamentos que lhe roubavam a secura da pele, regavam-lhe certezas e poesias de um futuro de outrora onde ela, sempre ela, assentava-se sobre o trono onde você ousou, certo dia, ali estar.

O bilhete

A noite lhe tecia a pele. Contornava seus contornos com ânsia sôfrega e doentia. Ela perambulava. Seu cabelo tempestuoso. Tempestade em seus cabelos. Como se estivesse em queda livre. Ela estava em queda livre.

Seus olhos diziam: CANSADA.

Seus olhos diziam: VAZIA.

Seus olhos diziam: ÚLTIMA CHANCE.

Tinha uma habilidade: escapar ilesa. Assim sobrevivia. Assim sobrevivera. Acusada de todos os crimes. Culpada de alguns. Preparadora de outros.

Nessa noite, caminhava, desproporcional. Colocou a mão no bolso. Havia um bilhete.

O bilhete dizia: VOCÊ PERDEU SUA VEZ.

O bilhete dizia: CHEGA DE SE PRENDER AO PASSADO.

O bilhete dizia: ESQUEÇA O MALDITO PASSADO.

Era sua letra. Seus “as” falhos, trépidos. Longas pernas nos “es”. As outras letras cuidadosamente diagramadas. Sua letra. Seu bilhete. Sua sentença. Autossentença. Como textos reflexivos e ternas condenações. Caminhava. Logo, seus pés a levaram às margens de um rio calmo que dançava sob a luz do luar. Jogando sua lua refletida pra cá e pra lá. As pequenas ondas bifurcavam o reflexo da lua. Dividindo-a. Sulcando-a. A lua que sempre a acompanhara, agora a rimava em novos versos.

Amassou o bilhete e o arremessou ao rimo.

Ainda o viu mergulhar na lua bipartida.

Seus olhos diziam: CANSADA.

Seus olhos diziam: VAZIA.

Seus olhos diziam: MAIS UMA CHANCE.

Tempo

Filtrava-se como se pudesse se esquivar da fúria do Tempo. A fúria das horas. A fúria que aflora nas horas de solidão. Era inócua aos seus medos. Mas determinada diante dos seus objetivos.

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