Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Category: Textos Engraçados (page 2 of 2)

Textos engraçados e crônicas humorísticas

O colecionador de manias

Tinha uma mania: era colecionador de manias.

A primeira a ser constatada foi a mania de morder as pessoas. Odaxelagnia. Inicialmente, foi visto como algo normal. Pelo menos para os pais, que até achavam “bonitinho”. Os professores, a maioria já mordiscada por ele, haviam dado o alerta. Mas o costume de achar que o tempo cura tudo imperou, e os pais deixaram para lá.

– É coisa da idade.

Quando começou a crescer, sair-lhe barba, falar grosso, e ainda assim, mordendo todos a quem encontrava, os pais começaram a ficar preocupados. Na primeira entrevista de emprego, deu problema. Ao ser cumprimentado, não resistiu e mordeu a mão da entrevistadora. Não havia mais como negar: definitivamente ele tinha um problema. E dos sérios.

Arrumaram-lhe um psicólogo, mas este desistiu logo no primeiro dia. No final da sessão, tinha marcas de dentes nas mãos e no pescoço. O que as pessoas diriam? Tinha uma reputação a zelar. Se começasse a chegar em casa assim, daria divórcio na certa.

Tentaram uma psicóloga. E para surpresa de todos, ele não a mordeu. O que não foi exatamente uma boa notícia. Isso porque o turbilhão de manias estava apenas entrando em erupção. Foi o que a psicóloga percebeu ao notar o paciente se levantando diversas vezes para ir ao banheiro.

– O que você tem?

– Ah, esses malditos germes que não saem das minhas mãos.

Diagnóstico: Ablutomania.

Ela teria cuidado disso se, na sessão seguinte, ele não tivesse entrado no consultório e dito, sem delongas:

– Posso arrancar seus pelos?

– Quê?

– Os pelinhos do seu braço. Posso arrancar?

– Não, claro que não.

Ele mostrou os braços pelados.

– Ah, eu arrancaria os meus, se tivesse sobrado algum.

Tricotilômano, concluiu a psicóloga, estupefata.

As notícias sobre ele correram. O jornal local fez uma matéria com enfoque nas manias, e usou sua história. A TV local também se interessou. Foi difícil entrevistá-lo porque ele ficava o tempo todo se escondendo do repórter: Criptomania.

Teve uma vida bastante agitada. Foi preso por causa da Cleptomania. Tornou-se professor de dança graças a Coreomania. Mas perdeu o mesmo emprego por causa da Rinotilexomania.

Chegou a aparecer ao vivo numa chamada da TV, no alto de um prédio. Mas a psicóloga acalmou a todos:

– Podem ir pra casa. Isso é só uma crise de Acromania.

– Crise de quê?

– Mania de ficar em lugares altos.

Seus relacionamentos amorosos não ajudaram muito. Arrumou diversas namoradas e admiradoras por causa da Erotografomania. Mas, as mesmas paqueras o levaram à falência por causa de sua mania de dar presentes: Doromania.

Entrou para o Guiness Book como homem com mais manias no mundo, e depois disso, desapareceu. Hoje, ninguém mais sabe por onde anda. Dizem que vive escondido, vitimado pela Agromania.

Mas, quando alguém quer saber algo sobre ele, recorre ao Livro dos Recordes. Lá está um pouco de sua história e a lista de suas 38 manias. Curiosamente, a primeira delas a ser constatada, a Odaxelagnia, não está na lista. Pelo menos, não declaradamente. Afinal, na foto em que acompanha seu recorde, é possível vê-lo em flagrante, dando uma senhora de uma dentada no braço da juíza do Guiness.

D’ARTAGNAN, O FILÓSOFO

Não era o que poderia se chamar de uma figura popular, mas estava um pouco além do anonimato. Seu nome era João D’Artagnan, mas era mais conhecido como D’Artagnan, o Filósofo. O típico personagem de crônicas engraçadas.  Rapaz universitário, cursando Letras, magro, óculos de grau, e tênis All Star azul rasgado. Era consumidor inveterado de livros e gibis, indo dos mangás a Shakespeare, das antigas fotonovelas em papel-jornal colecionadas pela avó Beneditina, com quem morava, até os desmedidos contratos de licenças de software pago (coisa que, convenhamos, ninguém nunca leu). Já tinha lido o Houaiss de capa a capa (o Aurélio, três vezes) e todas as bulas de remédio da supracitada avó Beneditina, o que era quase uma farmácia inteira.

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CRÔNICA ALEGRE, EXCETO PELO FATO DE SER DEPRESSIVA

Não tinha vícios, exceto a televisão, o cigarro e a bebida. Horas e horas esparramado em seu sofá, diante da TV soberana, devorando batata frita e hambúrguer, cercado por onipresentes latas de cerveja, cheias e vazias, as pernas abertas dando espaço para a banha protuberante que lhe escapava pela cueca úmida, e pareciam amalgamar com o tecido desgastado do sofá.

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Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Os dias tensos perdem força diante do caos real do hoje. Não é nítido recuperar o passado em palavras, e contar a um estranho. A tendência é se esconder, desaparecer entre a chuva e o medo. O psicólogo tem cara de psicopata. Me lembra Dr. Lecter. Será que ele vai degustar parte do meu rosto durante uma de nossas conversas? Hoje, a terceira consulta.

– Você precisa confiar em mim, Messina. – A voz dele é a voz do soldado Pyle, em Full Metal Jacket, na cena do banheiro. Fico feliz por ele não ter dito: “Hi, Joker”.

Melhor o senhor não confiar em mim, doutor. Penso. Não digo. Prefiro não ameaçar esse homem, ou ele pode pular em cima de mim, arrancar meus olhos, mastigar minha esclera, sugar o canal hialóideo, e se lambuzar com minha fóvea central. Existem tensões que podem ser evitadas. E outras que nem deveriam ser cogitadas.

As paredes do consultório são verdes. Um verde musgo. Verde mórbido. Lembram hospital. Supuram pensamentos inquietantes. Daqueles que deixam a gente se remexendo feito um cachorro sarnento na cadeira.

– Me conte sobre seu dia, Messina.

Chego tomar um susto. Ele não pede. Ameaça. Só faltou colocar uma arma na minha cabeça e salivar.

– Meu amigo imaginário não deu as caras hoje.

– Que bom!

– Em outras palavras, não conversei com ninguém.

– E a garota que você disse que ia convidar pra sair? Vai dizer que amarelou?

– Se eu continuar amarelando desse jeito, doutor, vou acabar virando um Simpons. – Dou uma risada alta e ele continua sério. Então, me recomponho e continuo: – Descobri que ela tem namorado.

– Mesmo?

– Fiquei mal pra burro.

– O que não é novidade. – Às vezes, acho que o safado está de sacanagem com minha cara. – E o que você fez?

– Eu liguei pra um amigo. Pra conversar.

– E…?

– Deu telefone inexistente. Fazia anos que não nos falávamos.

– Ah.

– Aí, só me restava procurar meu irmão.

– Mas você não disse que não tem irmãos?

– Será que foi por isso que ele não me atendeu? – Dou uma gargalhada, rindo da minha piada.

Ele não. Ao contrário, fica me olhando com cara de quem está pensando: “Você é um caso perdido, seu louco varrido”. Se ficasse por isso, estava bom. Afinal, em seguida, ele soltou um grunhido, mostrou as unhas e voou pra cima de mim.

Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Meu psicólogo em dois momentos relax

O Conquistador

Decidiu comprar um livro sobre como conquistar as mulheres. Taciturno, tortuoso, não lidava bem com elas. Até hoje, 35 anos nas costas, não fora capaz de conquistar um grande amor.

Por isso, comprou o livro de um especialista. “O Conquistador”, de Michelin Lucká. Que nome! Que sobrenome! Mais de 500 páginas de sapiência amorosa derramado em cada entrelinha.

Correu para casa e começou sua leitura (ele diria, seu “curso”). Pulou o prefácio – dizia que prefácios só enchem páginas, tomam tempo e enriquecem escritores. Não tinha tempo a perder. Afinal, era um desesperado ansioso por colher cada conselho randômico ali distribuído, que mudaria sua vida amorosa por completo. Cobriu as páginas com uma voracidade selvagem em dois dias. Salivou a cada conselho, a cada página que o conduziria a uma nova existência.

No terceiro dia, estava pronto. Era hora de colocar os conselhos em prática!

O especialista dissera: “Vista-se bem. Confira. Reconfira. Peça opiniões. Mulheres gostam de homens que se vestem bem. Se for pra sair com alguma camisa amarelo-cagado que seu avô te deu ano passado, fique em casa e vá assistir TV. Lembre-se: Vista-se muito bem”.  Patético até o osso, foi à balada de terno.

No bar, chegou balançando os braços. Isso demonstra segurança, dissera o especialista. Nada de mãos no bolso, movimentos curtos, passos miúdos. Isso é coisa de frouxo. Machos dominantes se movimentam exagerada e desnecessariamente.

Parecendo mais um boneco biruta de posto de combustível, chegou ao balcão e pediu uma bebida. Gritou, na verdade. Lembrava-se do que havia lido: “Perdedores falam pra dentro. Vivem fazendo as pessoas dizerem: hã? quê? como?”  Por garantia, esgoelou ao pedir um martíni.

Deu mais umas balançadas epilépticas e olhou de lado, para uma morena arrebatadora. Tinha olhos flamejantes pra burro, pensou. Um inferno de bonita. Daquelas que fazem o cara esquecer toda a lição de casa. Mas conseguiu se lembrar do conselho: “Sempre faça barulho. Quando falar, grite. Quando pensar, grunha. Quando bocejar, gema. Quando não estiver fazendo nenhuma dessas coisas, comece a batucar uma mesa, balcão ou o que estiver na frente”.

Coçou a cabeça, e gemeu; coçou o corpo e grunhiu; espreguiçou-se e atroou um longo “ooouuuuuuuuuaaaaaaaiiiiiiaaaaaaaiiiii” bem rouco, parecendo um javali dominante da floresta. Olhou para a morena, tentando imitar o olhar de James Bond.

“No primeiro contato que tiver com uma mulher, nunca diga ‘oi’. Isso é coisa de perdedor. Fale no mínimo 3 ou 4 palavras. Fale frases. Mulheres gostam de homens que falam frases. Nada de interjeições imbecis. Se for pra ficar na base do ‘legal, uhum, puxa, q coisa’, melhor voltar pra casa e comer farinha láctea”. 

– E aí, gata, o que rola?

– Quê???

“Se a mulher perguntar ‘quê?’ com uma expressão de quem acabou de presenciar alguém vomitando, suas chances estão no fim. Se quiser continuar vá em frente – já lidei com muitos teimosos como você -, mas vou avisando: nesse ritmo, acho melhor ligar pra sua mamãe e pedir pra voltar a morar com ela”. 

– Posso te pagar uma bebida?

– Eu já tenho uma – disse, apontando para o copo, evidentemente desinteressada ou apenas fazendo tipo. Sinceramente? Ela não estava fazendo tipo.

Lembrou-se de que o especialista havia dito sobre fazer as mulheres rirem. Mulheres gostam de caras que as façam rir. Uma sacada engraçada era o que ele precisava agora.

– Pois eu ainda não tenho uma bebida. Me paga uma? – E riu. Só ele, claro.

“Se você fizer uma piada e a mulher fizer uma expressão de búfalo em época de seca, com o sol a pino, em pleno verão africano, pode levar este livro de volta na livraria e pedir reembolso. Trabalho com perdedores, mas você já passou da conta”. 

Mas ele não estava a fim de se entregar tão facilmente. Tinha nas mangas um grande trunfo, o grande conselho do sábio que lhe dera forças para estar ali. “Seja sincero. Isto derrete o coração de qualquer durona”.

– Escute, eu não sei lidar muito bem com as mulheres, entende? Até comprei um livro pra aprender um pouco sobre a arte da sedução, mas confesso, acho que não levo jeito pro negócio. A única coisa que sei é que você é de longe a mulher mais linda dentro deste bar, e se for pra levar um fora, quero levar um fora seu.

Ela sorriu. Pensou no que dizer. Isso é bom. “Mulheres quando pensam no que vão dizer é sinal de que…”. De que…? de que…? Ah, dane-se. É sinal de alguma coisa.

– Escute querido. Se está aplicando o conselho de algum especialista, te aconselho a trocar de escritor. Esse aí, com certeza, é charlatão. – E voltou-se para a bebida.

Quanto a ele, magoado, voltou pra casa. Ainda sozinho. Ainda solitário. Para o dia de amanhã, não sabia muitas coisas, nem tinha esperanças. Mas ao menos tinha duas certezas.

Iria à livraria para devolver o livro; e no caminho de volta, aproveitaria pra comprar mais uma lata de farinha láctea.


Mulheres Inteligentes

Era uma garota culta. Notoriamente culta. Poucos atrativos físicos, mas um cérebro de causar inveja. Uma boa representante das mulheres inteligentes. Cursava o último ano de artes. Nas horas vagas, ouvia Pachelbel, lia Sartre, contemplava Dali, consumia Godard. Não simplesmente vivia. Estimulava-se. Exalava saber. Inspirava criação. Criava inspiração.

E entre tanto inspirar, ele transpirava paixão. Ele, perdidamente apaixonado pela “Garota Saber” que sequer sabia de sua existência. Como ela, ele também não era dotado de atrativos físicos. Diferentemente, era burro como uma porta. Se ao menos tivesse estudado textos sobre mulheres

Mas o amor consegue ser destemidamente desbravador quando quer. Por isso, ele estudou tanto quanto pôde todas as preferências dela, seus gostos. Demasiada informação. Repetição. Associação. Recapitulação. Noites e noites em claro.

Mas, ao menos, a recompensa lhe parecia perfeita e eterna.

Mulheres InteligentesNum barzinho universitário, ela sozinha junto ao balcão. Ele respira fundo. Bem fundo. Aproxima-se, um andar cautelosamente calculado. Senta-se ao lado, fingindo distração.

Ele, após pedir a bebida, sem olhar para ela:

– Esse ambiente é um tanto quanto claustrofóbico. Remete-me a Misery.

– Como?

– Digo: esse bar. Claustrofóbico. Misery.

– Misery? – Ainda tentando entender a abordagem do “estranho”.

– Uhum. Sir King.

– Ah! – Aquele “ah” de quem compreende. Ótimo. Ponto positivo.

– Só faltava nevar – brinca, nova referência ao livro.

– É. – Desanimadoramente monossilábica.

E então faz silêncio. Ele esperava um comentário convidativo, algo que fugisse às interjeições desestimuladas. Nada bom. Mas o amor consegue ser tapadamente persistente quando quer. Por isso, ele espera uma “deixa”.

A música ambiente, algum jazz que ele não conhece (o que não é de surpreender), termina, deixando uma aura de silêncio onde sussurros podem ser ouvidos. Ele suspira profundamente. Arremata:

– Play it again, Sam!

Ela sorri. Outro ponto positivo.

– Também amo Casablanca – ela.

– Assisti três vezes.

– Três?

– Essa semana.

– Puxa!

– Sabe como é?!? Um fã inveterado de Humphrey Bogart.

– Eu nem tanto. – E faz silêncio.

Ela discorda. Ponto negativo. E ainda por cima, o silêncio. Ele precisa continuar o assunto que conseguiu lhe arrancar um sorriso. Mas falar o quê? Nunca assistira Casablanca em toda sua vida. E não conseguia se lembrar dos detalhes do filme que havia estudado em alguma revista. Pouco importa. Continue. Continue.

– Pobre Scarlett O´Hara – arrisca.

– Como? – Ela ri. – Scarlett O´Hara em Casablanca?

Excesso de informação. Dados cruzados. Reorganize. Reorganize. Scarlett O´Hara. Nunca mais sentirei fome em minha vida. “Minha Vida de Cachorro”? Não. Tente se lembrar das associações. Scarlett. Fome. Sem comida. Sem, porque alguém levou. Comida que o vento levou. Aham, é isso!!!

Pontos de suor aflorando na testa, apressando-se em ressalvar:

– Refiro-me à sessão de logo mais. E o Vento Levou… quarta vez essa semana. Só de lembrar o que a pobre Scarlett vai passar, fico emocionado.

– Sério? Costuma chorar nos filmes?

– Até em Chaplin Marx.

– Quem?

Dados cruzados. Simplifique. Simplifique.

– Hãã… Chaplin, o vagabundo.

– Ah, sim. Ele tempera as piadas com emotividade. Consegue emostar as lágrimas.

– Concordo. – Deixaria a palavra “emostar” para o próximo encontro com o Aurélio. – Mas nada que um pouco de Mercury Rev após não resolva.

– Hum… Boa pedida. Mas quer uma sugestão: prefira Smiths. É mais simbiôntico.

Simbiôntico? Biôntico. Biônico. Olho biônico. Eletrônica.

– Sim, um som eletrônico é uma ótima sugestão.

– Smiths, eletrônico?

– Hãã… – Mais suor. Reorganize. Reorganize. Que inferno é esse tal de Smiths? Seria Will Smith??? Arrisque. – É que o rap tem algo de eletrônico.

Rap?? The Smiths é rock.

– Rock? Sim. Foi o que eu disse. RAP. “Rock to Alternative People”. Um movimento musical ocorrido nos guetos londrinos, iniciado nos anos noventa.

– Smiths nos anos noventa? – rindo.

Anta. Por que não colocou ponto final depois de “londrinos”? Agora se vira.

– Hãã… bem… É que talvez você não tenha ouvido a demo que lançaram na década de noventa, antes de estourarem nos anos dois mil.

– Como assim? The Smiths é dos anos 80.

Ele pigarreia. Demasiadamente embaraçado. Quase entregue. Quase… Mas o amor consegue ser insensivelmente cara de pau quando quer.

– Desculpe. Estou um pouco confuso. Qualquer um ficaria após contemplar Rembrandt por duas horas seguidas.

Surpresa:

– Você gosta de Rembrandt? Não acredito! Eu amo Rembrandt. Amo, amo, amo. Qual seu quadro preferido?

Quadro preferido? E agora? Acesso ao banco de dados mental. Qual era o nome daquela coisa cheia de rabiscos? “La Gioconda”? Não. “Peloton”? Não, esse é um disco do Delgados. “Sagrada Família”? Melhor não arriscar. Cruzamento de informação. Miscelânea. Mistura indigesta. E agora?

Ele, evasivo:

– Prefiro aquela fase após ele cortar a própria orelha.

– Mas quem cortou a orelha foi Van Gogh.

– É… Então… Pra ser bem sincero, estou começando agora a apreciar os pintores italianos.

– Italiano? – Rindo de novo. – Rembrandt era holandês.

– Era? Bem, isso era o que se acreditava no século 15…

– Mas Rembrandt viveu no século 17.

– CHEEEEEGA!!! – grita.

Ele se levanta, furioso, e retira-se do bar sem dizer mais uma palavra sequer. Das aulas com a Garota Saber, aprendeu uma importante lição: mulheres inteligentes são complicadas demais.

E nessas horas, nem o amor.


Diário de Manolo DDA II

Prezado Diário,

Estou exalando alegria. Hoje será um dia especial. Tenho um encontro à noite. Lembra-se daquela garota que mencionei? Algumas páginas atrás? O nome dela… o nome dela… Peraí, vou ver. Não achei, droga. Mas tenho certeza que está aqui em algum lugar. Ou estaria no outro diário? Eu tenho outro diário? Claro que não. Ah, eu tenho um caderno de poesias. Isso! Eu escrevi versos e poemas para ela. E usei seu nome. É isso! Segura aí. Achei! Santo poema!! Coloquei o nome dela no título do poema. “SERENA COR DE PRIMAVERA”. Mas… o nome dela é Serena ou Primavera? Droga, por que eu complico as coisas? O que acha, Serena ou Primavera? Tá mais com cara de Serena, né?  Não conheço ninguém com nome de Primavera. Mas, se for pensar bem, não conheço ninguém com nome de Serena também. E agora, Diário? Como vou me encontrar com uma garota se esqueci a palavra mais bela que existe no dicionário dela, seu nome? Droga, começou a bater deprê. Vida vã! Vida inútil! Calma, calma, respire. Eu me viro. Você sempre se vira, Manolo. Só não posso deixar ela perceber que esqueci o nome dela. Isso não é difícil. Eu sou esperto para essas coisas. Sou sim. Faço assim:

Pego nas mãos dela, e digo “Primavera”. Se ela falar “oi”, sorrindo, é porque acertei. Se ela franzir o cenho e falar “Quê???”, aí emendo: “Teus olhos são da cor da primavera, minha Serena”. Eu sou um gênio, caro diário. Devia se orgulhar disso.

A frase

Os vendedores se espremiam na sala pouco ventilada. Quem eram? Apenas 12 almas cansadas e mal pagas. A motivação já lhes fora, outrora, uma força dominante. Hoje, a motivação era apenas uma lembrança distante de algo que haviam experimentado.

Por isso, aquela reunião não lhes parecia objetiva. O anúncio havia sido dado no dia anterior: os vendedores deveriam estar presentes na Sala de Treinamentos, logo após às 18h00 para uma palestra motivacional.

Mais uma?, alguém perguntara, em protesto. Nunca tivemos palestras motivacionais, outro em resposta.

Descontentamento e protestos de nada adiantaram. Ali estavam as 12 pessoas cansadas, ansiosas para que toda aquela cena acabasse logo e pudessem ir para casa.

Precisamente às 18h00, a porta da Sala de Treinamentos se abriu. Os burburinhos e conversas inúteis que haviam ali, cessaram. A porta rangeu (faltava-lhe óleo como lhes faltava paixão).

Calmamente, uma estranha figura entrou. O corpo arqueado. Cabelos ralos e brancos se escondendo atrás da cabeça abarrotada de rugas. Trêmulo como um pêndulo. Caminhava, quase se arrastava. Um homem velho, em silêncio. Tomou sua posição em frente ao enorme quadro. Olhou para os 12 discípulos, esperou quinze segundos para recuperar o fôlego e passou a falar.

Era uma espécie de guru. Um conselheiro. Dava palestras motivacionais em centenas de empresas pelo país. Nunca andava de carro, avião, moto ou bicicleta. Cruzara o país, sempre a pé. Máquina melhor que minhas pernas, dizia, ainda não criaram. Sua alimentação resumia-se apenas a pão, água e frutas. Dormia sobre um pedaço de estopa de linho, apenas para forrar o chão. E afirmava estar com 120 anos. Vivia assim desde os seus vinte e poucos. O que o levara a essa vida de abstinência fora uma frase dita por um mestre seu, quase 100 anos atrás. Uma única frase que o tirara do materialismo e o levara para essa vida de abstenção e redenção. E era essa a frase que ele tinha a dizer aos 12 vendedores naquela sala, frase esta que mudara sua vida, e que mudaria a vida deles também.

Quando abriu a boca para enunciar a miraculosa expressão, arregalou os olhos que ficaram congelados diante da dor que se espalhava em seu peito. Antes mesmo de fechar os olhos, o velho desabou. Gritaria, correria, pedidos de socorro. Mas era tarde. O velho infartara, ali mesmo, no meio de sua palestra.

Algumas pessoas na empresa ficaram em choque, ao ver o corpo sendo conduzido para fora. Outras choravam. A maioria, sem palavras. Mas os 12 vendedores se entreolhavam e pareciam muito aliviados.

Afinal, se aquela frase induziu o velho a ter tal vida de extrema restrição, graças a Deus que ele enfartou antes de pronunciá-la.

Os antissociais I

— Alô?
— E aí?
— Fala, grande.
— Que tá fazendo?
— Nada. Debaixo das cobertas.
— Hum. Sei.
— E você?
— Na mesma.
— Um saco, hein!
— Pois é. Liguei pra isso.
— Isso o quê?
— Ah, sei lá. Esse tédio.
— Pra variar né?
— Vontade acabar com isso tudo.
— Isso tudo o quê?
— Com esse tédio, cara.
— Vá ler um livro.
— Outro?
— É, um saco!
— E como! Já foram três essa semana!
— Poxa.
— Tá a fim de sair?
— Nem. Pra onde?
— A festa da facul.
— Ah, nem vou. Tô debaixo das cobertas.
— Só sair daí.
— Nem. Só saio daqui amanhã cedo.
— Eu tô a fim de ir.
— Você vai?
— Não disse que vou. Disse que estou com vontade.
— Mas você vai?
— Ah, sei lá.
— Fazer o que lá, cara?
— Fazer o que aqui?
— Vá ler um livro.
— Você não se incomoda com isso?
— Isso o quê?
— Ficar dias e dias enfiado nesse quarto. Você é um ser humano ou uma ameba?
— Ó quem fala.
— É disso que estou falando.
— Eu não sou uma ameba.
— Amebas são mais sociáveis, isso sim.
— São?
— Devem ser. São mais populares que nós, pelo menos.
— Se são. Você vai?
— Pensando. Dá medo.
— E eu não sei?
— Vai ter muita gente estranha lá.
— E como! Você vai?
— Se você for, eu vou.
— Eu não vou.
— Por que não?
— Nem a pau. Muita gente. Gente estranha.
— A gente se enturma.
— Certeza?
— Bom, acho que não. Mas a gente tenta, pelo menos.
— A gente tentou ano passado, lembra?
— É.
— Não deu em nada.
— É.
— Os dois largadões lá no meio sem saber o que fazer.
— É.
— Olhando um para a cara do outro. No mesmo lugar durante duas horas.
— Se ao menos a gente soubesse dançar.
— E quem ia querer dançar com a gente?
— Pior. Fiascaço.
— E como!
— Melhor deixar essa ideia pra lá, né?
— Melhor mesmo.
— Mas, o que eu faço nessa porcaria de sábado?
— Ah, sei lá. Faça o mesmo que eu.
— OK.
Desligou, e foi ler um livro.
Um saco!

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