Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

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Cuida de Mim

Seus olhos me deixaram estático. Seu brilho calou-me silêncio. Como se a vida pudesse esperar um pouco mais. Sem pressa. Sem presas. Acesas, cem mil luzes. Seu encanto feriu-me a cura. Curou-me a ressaca, overdose de seu sorriso. Seu pranto molhou-me seco, e seco o céu, tua luz em véu. Veio assim, de passagem. Sem pretensões. Pensei ter passado. Mas você ficou. Fez moradia. Acalmou a ventania. Que o dia passe agora. Que passe todo num passe de mágica. Eu vou ficar aqui, um pouco mais. Mas, por carente, uma solidão indecente, te peço pra ficar. Deixe o sol pra lá. Deixe o céu e o mar. Deixe a areia e o que quiser voltar. Eles sabem se cuidar. Por hora, por ora, por agora… Cuida de mim.

Cuida de Mim

SONHOS EM COMA

Sonhos em coma. O medo já é rotina, como um ator principal. As gargalhadas estão ausentes da cena, cedo demais. Deveriam estar aqui. Poderiam estar. Um quinto, que fosse. De mãos dadas aos sonhos. Ainda que em silêncio. Ainda que carente de atenção. Onde foste parar, esperança? Por que não esperaste um pouco mais? Na sua ausência, chegou o tédio. Espalhou-se como gangrena. Esgotou um corpo. Carências e pele ressequida. Queria te ver. Eu poderia te ver. Te resgatar dos seus grilhões. Te trazer de volta a luz. Salvar-te de crônicas narrativas decadentes, para que possas me salvar. Sem você, esperança, pelo que devo esperar?

Sonhos em coma

ELA, O MONSTRO

Tinha esvaído suas esperanças em homens que a trataram como aquilo que sempre procurara desmentir: sua qualidade estativa. Julgava-se humana. Capaz. Sentimentos e qualidades em cada poro. Mas eles a moldaram em figura estatuária, uma boneca feito de lixo. Uma alma triste e sua corrosiva hirteza. Trancou-se entre quatro paredes. Privou-se de luz, de vozes, de promessas. Fora convencida de que não fazia parte da raça humana. Construíra espaços, mas nunca os alcançara. Sonhos de concreto feitos com papel. Esperança de aço montada com areia do mar. Acima do peso, a fala lenta e pesada, as espinhas proliferando e deformando seu rosto. A vítima. Mais uma vítima. Mais um monstro criado pela sociedade exigente. A guerra deformou a poetisa. E a garota que um dia já sonhara, agora suava e tremia, pensamentos mórbidos. De lúdica a voraz. Seu amor não correspondido regurgitado num ódio impulsivo. Se ela era o verme, então, estava na hora de devorar o intestino dos funestos mortais.

Ela, o Monstro

Como se constrói um monstro? Zombaria e desprezo. Não se precisa muito mais do que isso. Ela, o monstro. Caminhava na escuridão. O olhar focado no nada. Os olhos vazios e cheios de rancor. Suor por todo seu corpo. A pele rígida e pálida pulverizada em textos reflexivos. Não lhe era natural. Fora construída. A falta de amor fora substituída pela ânsia de estímulos. Desta feita, estímulos de um vermelho vivo.

Uma alma, um soldado. Pesticida em suas veias. E finalmente, um vulto na escuridão. Dois, aliás. Risadas. Há quanto tempo ela não ria, verdadeiramente? Sorriso esporádicos e obrigatórios sempre lhe foram uma insistência ácida. Agora, aqueles sons lhe pareciam um rogo maldito, preces infortunosas. Uma gargalhada. Após um grito. Um flash viscoso saltando de uma garganta entreaberta. Uma queda lenta. Um tombar surdo. E o outro vulto, estático. O espanto lhe paralisando os membros. Um filete de luz solitária de uma janela qualquer, revelou-lhe o rosto. Um jovem, o olhar espantado não escondia a embriaguez. Um vencedor. Aqueles que chegam ao mundo num berço de ouro, e o que não conquistam por herança, o conseguem com seu corpo e fala macia.  Era perceptível sua dúvida: gritava? corria? ou esperava sua vez? No hesitar, foi-lhe imposta a terceira opção. A lâmina em sua mão reluziu antes de abrir a garganta do belo jovem, e pode divisar, por um instante, seu esôfago envolvido pelos nervos recorrentes. O sangue ganhou o ar saltando vigoroso do sulco traqueoesofágico. Decorou-lhe a mão inerte. Ela não tremia. Fora bem construída. Detalhes cuidadosamente montados. Seus criadores deveriam se sentir orgulhosos.

Continuou a caminhar pela escuridão. Haveria outros pelo caminho. O monstro ansiava pelo encontro com cada um deles. Até que fosse parada. Se fosse parada. A esta altura, já se sentia imortal.

As noites eternas lhe seriam pouco, pensou.

DIÁLOGOS FILOALCOÓLICOS DE LUCKÁ E MESSINA – I

Tirinha engraçada

POEMA DE AMOR

Troco tuas mentiras
Por todos meus delírios
Teu trono de sujeira
Pela paz longe de ti.
A insanidade em meus olhos
É a liberdade de tuas garras
As correntes que me atam
São as mesmas que me afagam
Em uma manhã de sol
Sem tua aura doentia
Que só presenteava
Torpe asfixia.
Antevejo teus tropeços
Suprimo endereço
Regurgito as promessas
E delas me esqueço
Desce pelo ralo
Tua infame podridão
Teu ego em dejeto
Abjeto coração
Desce pelo ralo
Tua fria insanidade
Tua pele e bom bocado
Pelos ratos, rejeitados.
Guiem-te memórias
Como solos pesadelos
Já eu sigo adiante
Liberto de tuas sânies
Abscessos e icor
E te deixo estes versos e poemas
Como um belo e romântico
Poema de amor.

 

Poema de Amor

POEMA – CALA-ME

De olhos fechados, te digo
De boca fechada, te vejo
De fé, na noite bucólica
Teu olhar transeunte
Se resigna
E se apaixona pelo meu.
De olhos partidos
Te clamo, te amo, me insano
Arritmia voraz
Teu tom de voz
Um som a sós
Que me cerca
Me abraça
E me permite
Assim calar.

Poema Cala-me

Teu Medo, Meu medo

Medo é contagioso. Pelo menos em casos como o meu, em que a coragem possui baixíssima imunidade. Dizem que compartilhar seus medos pode lhe trazer benefícios. Mas, o que não te contaram é sobre o grande potencial de contaminar os ouvintes com o seu temor.

Foi assim comigo, dezembro passado, espremido entre um trêmulo oriental e a pequenina janela do avião. Procurava me ajeitar no espaço reduzido para um cochilo tranquilo, quando o sujeitinho do lado pronunciou a maldita frase:

– Essa porcaria vai cair.

Um homem-bomba? Olhei para o lado e vi o coitado se borrando. Percebendo logo que não se tratava de um suicida, perguntei:

– Primeira vez?

– Oi?

– Perguntei se é a primeira vez?

– Tô mais preocupado se vai ser a última.

Procurei sorrir e confortá-lo:

– Relaxa. Viajar de avião é mais seguro que andar de carro ou a pé.

– Ah é? Caiu um  semana passada, você viu?

– Sim. Dos mais de 100 mil que costumam levantar voo todos os dias.

– De que adianta 99.999 chegarem ao destino, se o meu resolver cair?

Eu dei risada e completei:

– Ei, não seja egoísta. Não é seu, é o nosso avião. Se você se esborrachar, eu vou junto.

Ri novamente, mas ele não achou graça. Ficou me olhando com uma expressão reprovadora pela piada fora de hora. Por isso, falei sério:

– Escute. Procure respirar fundo e pense em coisas positivas. Você é casado?

– Quer saber se vou deixar viúva?

– Ei cara, não exagere. Escute: é normal sentir medo. É só não deixar o medo te dominar. Procure fechar os olhos e…

– Fechar os olhos? Só falta me pedir pra dormir.

– Não seria uma má ideia.

– Você sabia que a dor é maior se você sofre um impacto enquanto está dormindo?

– Como assim?

– Quando você está acordado e sofre uma lesão, você contrai os músculos e isso diminui a dor. Mas se você está dormindo, os músculos ficam relaxados. E aí, parceiro, a dor é bem maior.

– Mas se você está dormindo, nem dá tempo de sentir dor.

Ele se inclinou pro meu lado e sussurrou:

– O cérebro continua enviando sinais de dor por alguns segundos. Você sofre como um porco.

– Onde você ouviu isso?

– Eu vi no YouTube. Tinha um médico dessas coisas falando sobre isso.

De repente, perdi a vontade dormir.

Tempos depois, ele disse:

– Olha como ele balança.

– Mas isso é a turbulência.

– Mas tá balançando demais. Isso não é normal.

– Será?

– Eu vi um vídeo na internet e o rapaz falou que, não sei porquê, quando balança de um jeito, o avião cai.

– “De um jeito”? Mas, de que jeito?

– Desse jeito, homem! Ah, e o cara era especialista.

– Especialista em quê?

– Ah, nesses troços de avião.

Foram 20 minutos, os mais longos de minha vida. Até que, para meu alívio e sobrevivência de todos,  o avião pousou sem problemas. Na saída, o “vizinho” atormentado ainda arrematou:

– É, dessa vez escapamos. – E pela primeira vez em nosso desagradável encontro, sorriu.

O psicótico deve ter ido pegar um táxi, pela expressão de alívio. Quanto a mim, ainda tinha que pegar uma conexão. E as palavras do cidadão me acompanhavam.

Na outra aeronave, já acomodado, não estava com sono, nem com vontade ler ou qualquer coisa que o valha. Assim que levantamos voo, olhei para um tranquilo senhor, sentado ao meu lado. Percebendo que eu não estava lá muito bem, ele me perguntou:

– Está tudo bem, filho?

Após engolir em seco, arrematei:

– Não sei não, cara. Mas acho que essa porcaria vai cair.

O Conquistador

Decidiu comprar um livro sobre como conquistar as mulheres. Taciturno, tortuoso, não lidava bem com elas. Até hoje, 35 anos nas costas, não fora capaz de conquistar um grande amor.

Por isso, comprou o livro de um especialista. “O Conquistador”, de Michelin Lucká. Que nome! Que sobrenome! Mais de 500 páginas de sapiência amorosa derramado em cada entrelinha.

Correu para casa e começou sua leitura (ele diria, seu “curso”). Pulou o prefácio – dizia que prefácios só enchem páginas, tomam tempo e enriquecem escritores. Não tinha tempo a perder. Afinal, era um desesperado ansioso por colher cada conselho randômico ali distribuído, que mudaria sua vida amorosa por completo. Cobriu as páginas com uma voracidade selvagem em dois dias. Salivou a cada conselho, a cada página que o conduziria a uma nova existência.

No terceiro dia, estava pronto. Era hora de colocar os conselhos em prática!

O especialista dissera: “Vista-se bem. Confira. Reconfira. Peça opiniões. Mulheres gostam de homens que se vestem bem. Se for pra sair com alguma camisa amarelo-cagado que seu avô te deu ano passado, fique em casa e vá assistir TV. Lembre-se: Vista-se muito bem”.  Patético até o osso, foi à balada de terno.

No bar, chegou balançando os braços. Isso demonstra segurança, dissera o especialista. Nada de mãos no bolso, movimentos curtos, passos miúdos. Isso é coisa de frouxo. Machos dominantes se movimentam exagerada e desnecessariamente.

Parecendo mais um boneco biruta de posto de combustível, chegou ao balcão e pediu uma bebida. Gritou, na verdade. Lembrava-se do que havia lido: “Perdedores falam pra dentro. Vivem fazendo as pessoas dizerem: hã? quê? como?”  Por garantia, esgoelou ao pedir um martíni.

Deu mais umas balançadas epilépticas e olhou de lado, para uma morena arrebatadora. Tinha olhos flamejantes pra burro, pensou. Um inferno de bonita. Daquelas que fazem o cara esquecer toda a lição de casa. Mas conseguiu se lembrar do conselho: “Sempre faça barulho. Quando falar, grite. Quando pensar, grunha. Quando bocejar, gema. Quando não estiver fazendo nenhuma dessas coisas, comece a batucar uma mesa, balcão ou o que estiver na frente”.

Coçou a cabeça, e gemeu; coçou o corpo e grunhiu; espreguiçou-se e atroou um longo “ooouuuuuuuuuaaaaaaaiiiiiiaaaaaaaiiiii” bem rouco, parecendo um javali dominante da floresta. Olhou para a morena, tentando imitar o olhar de James Bond.

“No primeiro contato que tiver com uma mulher, nunca diga ‘oi’. Isso é coisa de perdedor. Fale no mínimo 3 ou 4 palavras. Fale frases. Mulheres gostam de homens que falam frases. Nada de interjeições imbecis. Se for pra ficar na base do ‘legal, uhum, puxa, q coisa’, melhor voltar pra casa e comer farinha láctea”. 

– E aí, gata, o que rola?

– Quê???

“Se a mulher perguntar ‘quê?’ com uma expressão de quem acabou de presenciar alguém vomitando, suas chances estão no fim. Se quiser continuar vá em frente – já lidei com muitos teimosos como você -, mas vou avisando: nesse ritmo, acho melhor ligar pra sua mamãe e pedir pra voltar a morar com ela”. 

– Posso te pagar uma bebida?

– Eu já tenho uma – disse, apontando para o copo, evidentemente desinteressada ou apenas fazendo tipo. Sinceramente? Ela não estava fazendo tipo.

Lembrou-se de que o especialista havia dito sobre fazer as mulheres rirem. Mulheres gostam de caras que as façam rir. Uma sacada engraçada era o que ele precisava agora.

– Pois eu ainda não tenho uma bebida. Me paga uma? – E riu. Só ele, claro.

“Se você fizer uma piada e a mulher fizer uma expressão de búfalo em época de seca, com o sol a pino, em pleno verão africano, pode levar este livro de volta na livraria e pedir reembolso. Trabalho com perdedores, mas você já passou da conta”. 

Mas ele não estava a fim de se entregar tão facilmente. Tinha nas mangas um grande trunfo, o grande conselho do sábio que lhe dera forças para estar ali. “Seja sincero. Isto derrete o coração de qualquer durona”.

– Escute, eu não sei lidar muito bem com as mulheres, entende? Até comprei um livro pra aprender um pouco sobre a arte da sedução, mas confesso, acho que não levo jeito pro negócio. A única coisa que sei é que você é de longe a mulher mais linda dentro deste bar, e se for pra levar um fora, quero levar um fora seu.

Ela sorriu. Pensou no que dizer. Isso é bom. “Mulheres quando pensam no que vão dizer é sinal de que…”. De que…? de que…? Ah, dane-se. É sinal de alguma coisa.

– Escute querido. Se está aplicando o conselho de algum especialista, te aconselho a trocar de escritor. Esse aí, com certeza, é charlatão. – E voltou-se para a bebida.

Quanto a ele, magoado, voltou pra casa. Ainda sozinho. Ainda solitário. Para o dia de amanhã, não sabia muitas coisas, nem tinha esperanças. Mas ao menos tinha duas certezas.

Iria à livraria para devolver o livro; e no caminho de volta, aproveitaria pra comprar mais uma lata de farinha láctea.


Mulheres Inteligentes

Era uma garota culta. Notoriamente culta. Poucos atrativos físicos, mas um cérebro de causar inveja. Uma boa representante das mulheres inteligentes. Cursava o último ano de artes. Nas horas vagas, ouvia Pachelbel, lia Sartre, contemplava Dali, consumia Godard. Não simplesmente vivia. Estimulava-se. Exalava saber. Inspirava criação. Criava inspiração.

E entre tanto inspirar, ele transpirava paixão. Ele, perdidamente apaixonado pela “Garota Saber” que sequer sabia de sua existência. Como ela, ele também não era dotado de atrativos físicos. Diferentemente, era burro como uma porta. Se ao menos tivesse estudado textos sobre mulheres

Mas o amor consegue ser destemidamente desbravador quando quer. Por isso, ele estudou tanto quanto pôde todas as preferências dela, seus gostos. Demasiada informação. Repetição. Associação. Recapitulação. Noites e noites em claro.

Mas, ao menos, a recompensa lhe parecia perfeita e eterna.

Mulheres InteligentesNum barzinho universitário, ela sozinha junto ao balcão. Ele respira fundo. Bem fundo. Aproxima-se, um andar cautelosamente calculado. Senta-se ao lado, fingindo distração.

Ele, após pedir a bebida, sem olhar para ela:

– Esse ambiente é um tanto quanto claustrofóbico. Remete-me a Misery.

– Como?

– Digo: esse bar. Claustrofóbico. Misery.

– Misery? – Ainda tentando entender a abordagem do “estranho”.

– Uhum. Sir King.

– Ah! – Aquele “ah” de quem compreende. Ótimo. Ponto positivo.

– Só faltava nevar – brinca, nova referência ao livro.

– É. – Desanimadoramente monossilábica.

E então faz silêncio. Ele esperava um comentário convidativo, algo que fugisse às interjeições desestimuladas. Nada bom. Mas o amor consegue ser tapadamente persistente quando quer. Por isso, ele espera uma “deixa”.

A música ambiente, algum jazz que ele não conhece (o que não é de surpreender), termina, deixando uma aura de silêncio onde sussurros podem ser ouvidos. Ele suspira profundamente. Arremata:

– Play it again, Sam!

Ela sorri. Outro ponto positivo.

– Também amo Casablanca – ela.

– Assisti três vezes.

– Três?

– Essa semana.

– Puxa!

– Sabe como é?!? Um fã inveterado de Humphrey Bogart.

– Eu nem tanto. – E faz silêncio.

Ela discorda. Ponto negativo. E ainda por cima, o silêncio. Ele precisa continuar o assunto que conseguiu lhe arrancar um sorriso. Mas falar o quê? Nunca assistira Casablanca em toda sua vida. E não conseguia se lembrar dos detalhes do filme que havia estudado em alguma revista. Pouco importa. Continue. Continue.

– Pobre Scarlett O´Hara – arrisca.

– Como? – Ela ri. – Scarlett O´Hara em Casablanca?

Excesso de informação. Dados cruzados. Reorganize. Reorganize. Scarlett O´Hara. Nunca mais sentirei fome em minha vida. “Minha Vida de Cachorro”? Não. Tente se lembrar das associações. Scarlett. Fome. Sem comida. Sem, porque alguém levou. Comida que o vento levou. Aham, é isso!!!

Pontos de suor aflorando na testa, apressando-se em ressalvar:

– Refiro-me à sessão de logo mais. E o Vento Levou… quarta vez essa semana. Só de lembrar o que a pobre Scarlett vai passar, fico emocionado.

– Sério? Costuma chorar nos filmes?

– Até em Chaplin Marx.

– Quem?

Dados cruzados. Simplifique. Simplifique.

– Hãã… Chaplin, o vagabundo.

– Ah, sim. Ele tempera as piadas com emotividade. Consegue emostar as lágrimas.

– Concordo. – Deixaria a palavra “emostar” para o próximo encontro com o Aurélio. – Mas nada que um pouco de Mercury Rev após não resolva.

– Hum… Boa pedida. Mas quer uma sugestão: prefira Smiths. É mais simbiôntico.

Simbiôntico? Biôntico. Biônico. Olho biônico. Eletrônica.

– Sim, um som eletrônico é uma ótima sugestão.

– Smiths, eletrônico?

– Hãã… – Mais suor. Reorganize. Reorganize. Que inferno é esse tal de Smiths? Seria Will Smith??? Arrisque. – É que o rap tem algo de eletrônico.

Rap?? The Smiths é rock.

– Rock? Sim. Foi o que eu disse. RAP. “Rock to Alternative People”. Um movimento musical ocorrido nos guetos londrinos, iniciado nos anos noventa.

– Smiths nos anos noventa? – rindo.

Anta. Por que não colocou ponto final depois de “londrinos”? Agora se vira.

– Hãã… bem… É que talvez você não tenha ouvido a demo que lançaram na década de noventa, antes de estourarem nos anos dois mil.

– Como assim? The Smiths é dos anos 80.

Ele pigarreia. Demasiadamente embaraçado. Quase entregue. Quase… Mas o amor consegue ser insensivelmente cara de pau quando quer.

– Desculpe. Estou um pouco confuso. Qualquer um ficaria após contemplar Rembrandt por duas horas seguidas.

Surpresa:

– Você gosta de Rembrandt? Não acredito! Eu amo Rembrandt. Amo, amo, amo. Qual seu quadro preferido?

Quadro preferido? E agora? Acesso ao banco de dados mental. Qual era o nome daquela coisa cheia de rabiscos? “La Gioconda”? Não. “Peloton”? Não, esse é um disco do Delgados. “Sagrada Família”? Melhor não arriscar. Cruzamento de informação. Miscelânea. Mistura indigesta. E agora?

Ele, evasivo:

– Prefiro aquela fase após ele cortar a própria orelha.

– Mas quem cortou a orelha foi Van Gogh.

– É… Então… Pra ser bem sincero, estou começando agora a apreciar os pintores italianos.

– Italiano? – Rindo de novo. – Rembrandt era holandês.

– Era? Bem, isso era o que se acreditava no século 15…

– Mas Rembrandt viveu no século 17.

– CHEEEEEGA!!! – grita.

Ele se levanta, furioso, e retira-se do bar sem dizer mais uma palavra sequer. Das aulas com a Garota Saber, aprendeu uma importante lição: mulheres inteligentes são complicadas demais.

E nessas horas, nem o amor.


POEMA – BELEZA REPARTIDA

Um mergulho em seus olhos
Um retorno às minhas origens
Uma volta ao mundo
Um mundo de volta
Toda beleza repartida
Agora reunida
Num único olhar

Poema Beleza Repartida

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