Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Page 27 of 33

Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Os dias tensos perdem força diante do caos real do hoje. Não é nítido recuperar o passado em palavras, e contar a um estranho. A tendência é se esconder, desaparecer entre a chuva e o medo. O psicólogo tem cara de psicopata. Me lembra Dr. Lecter. Será que ele vai degustar parte do meu rosto durante uma de nossas conversas? Hoje, a terceira consulta.

– Você precisa confiar em mim, Messina. – A voz dele é a voz do soldado Pyle, em Full Metal Jacket, na cena do banheiro. Fico feliz por ele não ter dito: “Hi, Joker”.

Melhor o senhor não confiar em mim, doutor. Penso. Não digo. Prefiro não ameaçar esse homem, ou ele pode pular em cima de mim, arrancar meus olhos, mastigar minha esclera, sugar o canal hialóideo, e se lambuzar com minha fóvea central. Existem tensões que podem ser evitadas. E outras que nem deveriam ser cogitadas.

As paredes do consultório são verdes. Um verde musgo. Verde mórbido. Lembram hospital. Supuram pensamentos inquietantes. Daqueles que deixam a gente se remexendo feito um cachorro sarnento na cadeira.

– Me conte sobre seu dia, Messina.

Chego tomar um susto. Ele não pede. Ameaça. Só faltou colocar uma arma na minha cabeça e salivar.

– Meu amigo imaginário não deu as caras hoje.

– Que bom!

– Em outras palavras, não conversei com ninguém.

– E a garota que você disse que ia convidar pra sair? Vai dizer que amarelou?

– Se eu continuar amarelando desse jeito, doutor, vou acabar virando um Simpons. – Dou uma risada alta e ele continua sério. Então, me recomponho e continuo: – Descobri que ela tem namorado.

– Mesmo?

– Fiquei mal pra burro.

– O que não é novidade. – Às vezes, acho que o safado está de sacanagem com minha cara. – E o que você fez?

– Eu liguei pra um amigo. Pra conversar.

– E…?

– Deu telefone inexistente. Fazia anos que não nos falávamos.

– Ah.

– Aí, só me restava procurar meu irmão.

– Mas você não disse que não tem irmãos?

– Será que foi por isso que ele não me atendeu? – Dou uma gargalhada, rindo da minha piada.

Ele não. Ao contrário, fica me olhando com cara de quem está pensando: “Você é um caso perdido, seu louco varrido”. Se ficasse por isso, estava bom. Afinal, em seguida, ele soltou um grunhido, mostrou as unhas e voou pra cima de mim.

Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Meu psicólogo em dois momentos relax

QUEM DISSE QUE QUERO SER POP?

O cara de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante não sou eu. Não sei porque, mas quando ouço Cara Estranho, sinto que o sacana do Camelo está falando de mim. Cabe-me parte dos lucros? Direito de imagem, ainda que imagem escrita? Uma torpe impressão, um dia finito, algo assim.

Nessa onda, vieram os luserianos – o movimento. Termo cunhado pelo contumaz poeta-falido Paulo Lucká. Nascido nos becos dos anos 90, duas figuras curvilíneas e berrantes que mais pareciam a dupla dinâmica Quasimodo e Nosferatus. Luserianos. Losers. Nem tanto quanto parecia. Tínhamos o mundo diante dos nossos olhos. E nos amparávamos na literatura. A revolução.

Quem disse que quero ser pop?

– Vamos deixar John Fante no chão.

– Beatnik será brincadeira de criança.

– Nosso nome ainda figurará em livros de história.

– Não seria, literatura?

– Livros de história tem muito mais impacto.

– Han…

Precisávamos de outros como nós. Parecia fácil. Se for espancado por algum valentão no colégio, garanto que é poeta ou compositor. Abaixaram a calça de um na biblioteca: bem-vindo aos luserianos. Jogaram outro num cesto de lixo: você escreve, garoto? Um tapa na nuca do vesguinho: que tal vomitar toda sua revolta em textos reflexivos?

Cada qual com suas armas. Procurávamos as nossas. Éramos adolescentes. Um fruto ainda por crescer. Talvez se tivéssemos passado mais tempo no Sol, as pessoas seriam capazes de ouvir nossas risadas. Ou talvez, não. Aposto que você não se importa.

Assim nasceram Os Luserianos. Chegamos a 42. Quarenta e duas estranhas figuras que mal sabiam em que direção olhar. Queríamos ser heróis, mas cada um de nós se assemelhava mais aos vilões das histórias em quadrinho. Não construímos nada, efetivamente. Mas construímos o tudo também. Paradoxo insistente. Caos inexistente. Éramos como a Sociedade dos Poetas Mortos. Totalmente mortos, quase poetas, e longe da sociedade.  Nossos escritos compartilhados. Poetas e fãs, amalgamados. “Vou colar sua poesia na porta do meu quarto”. “Cara, me acabo de rir com seus textos humorísticos“. “Vejam a peça de teatro que escrevi”. Éramos jovens. E nos sentíamos vivos.

Na verdade, nunca desejamos estar em livros de história ou literatura. Nem queríamos ser fonte de inspiração para o Los Hermanos. Queríamos apenas a voz. Um grito ecoando pelos flancos e estourando seus tímpanos.

Eu sou uma alma, mas não exatamente um soldado. Não sou o cara que vai chegar e dominar uma conversa. Não sou o cara que vai te tirar pra dançar. Muito menos me esparramar sobre uma cadeira de bar, me espreguiçar e esbravejar para todos ouvirem: “ô vontade cagar”. Deixo isso para os caras de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante.

Me reservo a posição de ser eu. Abstenho-me de transmutações. Não me permito mudar. Nem me permito querer mudar.

Afinal, as pessoas não são merecedoras de tanto.

FERIDAS ANTIGAS

Na longa espera, esperava o retorno de quem há muito partira. Os olhos dela eram um espelho das lágrimas derramadas, noites mal dormidas. O silêncio lhe tirara o sol, lhe embriagara o sangue. Sangue que não mais corria. Rastejava-se, lânguido, por entre veias ressequidas, sem muita ideia de para onde ir. A Terra em constante movimento, mas ela estática. O amor lhe traíra. Uma faca em seu peito num momento de distração. Seus pés fincados no chão, as solas grossas, amalgamadas ao concreto frio.

Num certo dia, parou de olhar ao redor. Concluiu que o passado foi feito para ficar lá atrás. Um instante destruído não poderia ser eternizado. Não poderia lhe corar as faces. Nem tombar sua consciência.

Feridas AntigasEm anos, pela primeira vez, o futuro lhe sorriu. A sombra que se lhe fizera renegar, agora, derretia-se ante a intensidade que ela mesma carregava em estado natimorto. Soergueu-se no impacto do desejo, e descobriu-se apaixonada por si. Quando segundos ficaram para trás, seus pés caminhavam apressados rumo ao horizonte que lhe convidava.

No caminho, encontrou com ele – ELE, a razão de todo seu sofrimento. Ele sorriu-lhe feridas antigas, pediu-lhe perdões impossíveis, jurou-lhe promessas que não cumpriria. Por um instante, ela parou. Recorreu ao que antes ignorara: uma análise criteriosa da situação. Após pensar e meditar, sorriu-lhe acidez e despediu-se dele com um retundo:

– Vá pastar!


Cuida de Mim

Seus olhos me deixaram estático. Seu brilho calou-me silêncio. Como se a vida pudesse esperar um pouco mais. Sem pressa. Sem presas. Acesas, cem mil luzes. Seu encanto feriu-me a cura. Curou-me a ressaca, overdose de seu sorriso. Seu pranto molhou-me seco, e seco o céu, tua luz em véu. Veio assim, de passagem. Sem pretensões. Pensei ter passado. Mas você ficou. Fez moradia. Acalmou a ventania. Que o dia passe agora. Que passe todo num passe de mágica. Eu vou ficar aqui, um pouco mais. Mas, por carente, uma solidão indecente, te peço pra ficar. Deixe o sol pra lá. Deixe o céu e o mar. Deixe a areia e o que quiser voltar. Eles sabem se cuidar. Por hora, por ora, por agora… Cuida de mim.

Cuida de Mim

SONHOS EM COMA

Sonhos em coma. O medo já é rotina, como um ator principal. As gargalhadas estão ausentes da cena, cedo demais. Deveriam estar aqui. Poderiam estar. Um quinto, que fosse. De mãos dadas aos sonhos. Ainda que em silêncio. Ainda que carente de atenção. Onde foste parar, esperança? Por que não esperaste um pouco mais? Na sua ausência, chegou o tédio. Espalhou-se como gangrena. Esgotou um corpo. Carências e pele ressequida. Queria te ver. Eu poderia te ver. Te resgatar dos seus grilhões. Te trazer de volta a luz. Salvar-te de crônicas narrativas decadentes, para que possas me salvar. Sem você, esperança, pelo que devo esperar?

Sonhos em coma

ELA, O MONSTRO

Tinha esvaído suas esperanças em homens que a trataram como aquilo que sempre procurara desmentir: sua qualidade estativa. Julgava-se humana. Capaz. Sentimentos e qualidades em cada poro. Mas eles a moldaram em figura estatuária, uma boneca feito de lixo. Uma alma triste e sua corrosiva hirteza. Trancou-se entre quatro paredes. Privou-se de luz, de vozes, de promessas. Fora convencida de que não fazia parte da raça humana. Construíra espaços, mas nunca os alcançara. Sonhos de concreto feitos com papel. Esperança de aço montada com areia do mar. Acima do peso, a fala lenta e pesada, as espinhas proliferando e deformando seu rosto. A vítima. Mais uma vítima. Mais um monstro criado pela sociedade exigente. A guerra deformou a poetisa. E a garota que um dia já sonhara, agora suava e tremia, pensamentos mórbidos. De lúdica a voraz. Seu amor não correspondido regurgitado num ódio impulsivo. Se ela era o verme, então, estava na hora de devorar o intestino dos funestos mortais.

Ela, o Monstro

Como se constrói um monstro? Zombaria e desprezo. Não se precisa muito mais do que isso. Ela, o monstro. Caminhava na escuridão. O olhar focado no nada. Os olhos vazios e cheios de rancor. Suor por todo seu corpo. A pele rígida e pálida pulverizada em textos reflexivos. Não lhe era natural. Fora construída. A falta de amor fora substituída pela ânsia de estímulos. Desta feita, estímulos de um vermelho vivo.

Uma alma, um soldado. Pesticida em suas veias. E finalmente, um vulto na escuridão. Dois, aliás. Risadas. Há quanto tempo ela não ria, verdadeiramente? Sorriso esporádicos e obrigatórios sempre lhe foram uma insistência ácida. Agora, aqueles sons lhe pareciam um rogo maldito, preces infortunosas. Uma gargalhada. Após um grito. Um flash viscoso saltando de uma garganta entreaberta. Uma queda lenta. Um tombar surdo. E o outro vulto, estático. O espanto lhe paralisando os membros. Um filete de luz solitária de uma janela qualquer, revelou-lhe o rosto. Um jovem, o olhar espantado não escondia a embriaguez. Um vencedor. Aqueles que chegam ao mundo num berço de ouro, e o que não conquistam por herança, o conseguem com seu corpo e fala macia.  Era perceptível sua dúvida: gritava? corria? ou esperava sua vez? No hesitar, foi-lhe imposta a terceira opção. A lâmina em sua mão reluziu antes de abrir a garganta do belo jovem, e pode divisar, por um instante, seu esôfago envolvido pelos nervos recorrentes. O sangue ganhou o ar saltando vigoroso do sulco traqueoesofágico. Decorou-lhe a mão inerte. Ela não tremia. Fora bem construída. Detalhes cuidadosamente montados. Seus criadores deveriam se sentir orgulhosos.

Continuou a caminhar pela escuridão. Haveria outros pelo caminho. O monstro ansiava pelo encontro com cada um deles. Até que fosse parada. Se fosse parada. A esta altura, já se sentia imortal.

As noites eternas lhe seriam pouco, pensou.

DIÁLOGOS FILOALCOÓLICOS DE LUCKÁ E MESSINA – I

Tirinha engraçada

POEMA DE AMOR

Troco tuas mentiras
Por todos meus delírios
Teu trono de sujeira
Pela paz longe de ti.
A insanidade em meus olhos
É a liberdade de tuas garras
As correntes que me atam
São as mesmas que me afagam
Em uma manhã de sol
Sem tua aura doentia
Que só presenteava
Torpe asfixia.
Antevejo teus tropeços
Suprimo endereço
Regurgito as promessas
E delas me esqueço
Desce pelo ralo
Tua infame podridão
Teu ego em dejeto
Abjeto coração
Desce pelo ralo
Tua fria insanidade
Tua pele e bom bocado
Pelos ratos, rejeitados.
Guiem-te memórias
Como solos pesadelos
Já eu sigo adiante
Liberto de tuas sânies
Abscessos e icor
E te deixo estes versos e poemas
Como um belo e romântico
Poema de amor.

 

Poema de Amor

POEMA – CALA-ME

De olhos fechados, te digo
De boca fechada, te vejo
De fé, na noite bucólica
Teu olhar transeunte
Se resigna
E se apaixona pelo meu.
De olhos partidos
Te clamo, te amo, me insano
Arritmia voraz
Teu tom de voz
Um som a sós
Que me cerca
Me abraça
E me permite
Assim calar.

Poema Cala-me

Teu Medo, Meu medo

Medo é contagioso. Pelo menos em casos como o meu, em que a coragem possui baixíssima imunidade. Dizem que compartilhar seus medos pode lhe trazer benefícios. Mas, o que não te contaram é sobre o grande potencial de contaminar os ouvintes com o seu temor.

Foi assim comigo, dezembro passado, espremido entre um trêmulo oriental e a pequenina janela do avião. Procurava me ajeitar no espaço reduzido para um cochilo tranquilo, quando o sujeitinho do lado pronunciou a maldita frase:

– Essa porcaria vai cair.

Um homem-bomba? Olhei para o lado e vi o coitado se borrando. Percebendo logo que não se tratava de um suicida, perguntei:

– Primeira vez?

– Oi?

– Perguntei se é a primeira vez?

– Tô mais preocupado se vai ser a última.

Procurei sorrir e confortá-lo:

– Relaxa. Viajar de avião é mais seguro que andar de carro ou a pé.

– Ah é? Caiu um  semana passada, você viu?

– Sim. Dos mais de 100 mil que costumam levantar voo todos os dias.

– De que adianta 99.999 chegarem ao destino, se o meu resolver cair?

Eu dei risada e completei:

– Ei, não seja egoísta. Não é seu, é o nosso avião. Se você se esborrachar, eu vou junto.

Ri novamente, mas ele não achou graça. Ficou me olhando com uma expressão reprovadora pela piada fora de hora. Por isso, falei sério:

– Escute. Procure respirar fundo e pense em coisas positivas. Você é casado?

– Quer saber se vou deixar viúva?

– Ei cara, não exagere. Escute: é normal sentir medo. É só não deixar o medo te dominar. Procure fechar os olhos e…

– Fechar os olhos? Só falta me pedir pra dormir.

– Não seria uma má ideia.

– Você sabia que a dor é maior se você sofre um impacto enquanto está dormindo?

– Como assim?

– Quando você está acordado e sofre uma lesão, você contrai os músculos e isso diminui a dor. Mas se você está dormindo, os músculos ficam relaxados. E aí, parceiro, a dor é bem maior.

– Mas se você está dormindo, nem dá tempo de sentir dor.

Ele se inclinou pro meu lado e sussurrou:

– O cérebro continua enviando sinais de dor por alguns segundos. Você sofre como um porco.

– Onde você ouviu isso?

– Eu vi no YouTube. Tinha um médico dessas coisas falando sobre isso.

De repente, perdi a vontade dormir.

Tempos depois, ele disse:

– Olha como ele balança.

– Mas isso é a turbulência.

– Mas tá balançando demais. Isso não é normal.

– Será?

– Eu vi um vídeo na internet e o rapaz falou que, não sei porquê, quando balança de um jeito, o avião cai.

– “De um jeito”? Mas, de que jeito?

– Desse jeito, homem! Ah, e o cara era especialista.

– Especialista em quê?

– Ah, nesses troços de avião.

Foram 20 minutos, os mais longos de minha vida. Até que, para meu alívio e sobrevivência de todos,  o avião pousou sem problemas. Na saída, o “vizinho” atormentado ainda arrematou:

– É, dessa vez escapamos. – E pela primeira vez em nosso desagradável encontro, sorriu.

O psicótico deve ter ido pegar um táxi, pela expressão de alívio. Quanto a mim, ainda tinha que pegar uma conexão. E as palavras do cidadão me acompanhavam.

Na outra aeronave, já acomodado, não estava com sono, nem com vontade ler ou qualquer coisa que o valha. Assim que levantamos voo, olhei para um tranquilo senhor, sentado ao meu lado. Percebendo que eu não estava lá muito bem, ele me perguntou:

– Está tudo bem, filho?

Após engolir em seco, arrematei:

– Não sei não, cara. Mas acho que essa porcaria vai cair.

« Older posts Newer posts »

© 2025 Corrosiva

Theme by Anders NorenUp ↑