Ela puxou a pele da gordura malar, termo nada obtuso para a maçã do rosto, exibindo uma caricatura não tão distante da figura difusa que se tornara. Esticada, retesada, parecia-lhe menos agressiva. Manteve a bochecha esticada. Ainda se lembrava? Onde fora parar sua juventude, seu vigor? Uma busca nos esgotos fétidos revelaria algo? Deixou a bochecha, e foi até os olhos. Camadas de gordura e células mortas contornavam seus encantadores olhos azuis. Na verdade, contornavam, tempos atrás. Hoje, apenas camuflavam qualquer beleza dantesca que outrora ali residira. Resolveu aplicar o mesmo truque da bochecha nos olhos. Esticou a pele. Flacidez sem fim. Esticou. Por uma fração, percebeu uma mudança. As rugas pareciam se ocultar, mas a mancha escura se tornava mais coesa. As mãos tentavam, ora aqui, ora ali, descompassar inutilmente aquilo que o tempo impiedosamente lhe infligira como uma carga impossível de se carregar. Achou-se incapaz. O bisturi fizera algumas mudanças, é verdade. Mas não lhe devolvera aquilo que sua ambição tanto desejara: sua juventude, seu alvor. Apenas substituíra a velha e velha velhice por um rosto falso, inexpressivo, máscara putrescível. Seus seios haviam perdido a batalha para a gravidade há muito e muito tempo. Os quadris se alargavam numa velocidade impressionante, quase escapando ao acompanhamento policial de seus olhos investigativos.
Fora uma jovem normal, é verdade. Então, onde errara? A conclusão não era difícil. Quando os planos se tornam mais intensos que a realidade, a porcaria está feita. Em certa manhã, no ápice de sua juventude (e de sua imbecilidade), achou que tudo podia ser resumido a fórmulas matemáticas. Colocou tudo no papel. Prós e contras. Seria atriz, escritora, turista de 10 países, a página principal do Jornal da Felicidade e Utopia Inacessível Para Reles Mortais. Nessas horas, a pessoa se esquece que está apodrecendo aos poucos. É invadida pela chama falsa dos deuses do Olimpo. Teores de imortalidade. Odores de invencibilidade. Mal percebe o corpo recurvado, dia após dia. Mal percebe o hálito apodrecendo. A visão começa a lhe trair a percepção. Os passos já não tropeçam em obstáculos. Mas em si mesmos. Na fase infantil do registro de sonhos na caderneta, achara que seria a esposa perfeita, mãe aos 30, filha exemplar. Quando o tema das conversas fosse os bem-sucedidos, seria sempre apontada.
Mas quando começou a se esquecer de coisas pequenas (havia sido uma garota de memória invejável) percebeu que algo estava errado. O tempo parecia errado, não ela. Ele havia disparado, e a deixado para trás. Tempo traiçoeiro. Ela correu atrás. Tentou alcançá-lo. Correu. Correu. E se cansou. Não havia mais tempo. Ele se esgotara. Ela também. O vigor já não existia. Os planos se provaram falhos e infantis. Cansou-se. A corrida estava acabando, e ela era a última colocada. Xingou o tempo.
Pensou melhor, e xingou a si mesma.
Sentou-se, gemendo e praguejando. Lombalgia. Dores nas regiões lombares ou lombossacrais. Ela costumava chamar de “maldita dor dos infernos”. Hoje era difícil definir o que doía. Os dentes doíam, o pulmão doía, os pés doíam. Toda sua alma, enfim. O que não doía, latejava.
Do que se arrependia? De tudo. Principalmente, por ter sonhado o impossível. Ah, o impossível. O Olimpo. A altivez. Besteira! Hoje, sozinha. O marido morrera anos atrás. Mas as fragilidades estavam bem vivas. Sem filhos, restara-lhe a casa. A casa. Ela. E seus fantasmas.
Pensou em escrever sua história. Um registro para a posteridade. Não que alguém fosse se interessar. Mas seria seu desabafo. Pensou num título. Ocorreu-lhe um. Botou no papel: “Vida, Lutas e Derrotas de uma Guerreira”.
Se não fosse uma partícula de orgulho sobrevivente, teria escrito: “Lamentável Saco de Refugo”.