Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

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A frase

Os vendedores se espremiam na sala pouco ventilada. Quem eram? Apenas 12 almas cansadas e mal pagas. A motivação já lhes fora, outrora, uma força dominante. Hoje, a motivação era apenas uma lembrança distante de algo que haviam experimentado.

Por isso, aquela reunião não lhes parecia objetiva. O anúncio havia sido dado no dia anterior: os vendedores deveriam estar presentes na Sala de Treinamentos, logo após às 18h00 para uma palestra motivacional.

Mais uma?, alguém perguntara, em protesto. Nunca tivemos palestras motivacionais, outro em resposta.

Descontentamento e protestos de nada adiantaram. Ali estavam as 12 pessoas cansadas, ansiosas para que toda aquela cena acabasse logo e pudessem ir para casa.

Precisamente às 18h00, a porta da Sala de Treinamentos se abriu. Os burburinhos e conversas inúteis que haviam ali, cessaram. A porta rangeu (faltava-lhe óleo como lhes faltava paixão).

Calmamente, uma estranha figura entrou. O corpo arqueado. Cabelos ralos e brancos se escondendo atrás da cabeça abarrotada de rugas. Trêmulo como um pêndulo. Caminhava, quase se arrastava. Um homem velho, em silêncio. Tomou sua posição em frente ao enorme quadro. Olhou para os 12 discípulos, esperou quinze segundos para recuperar o fôlego e passou a falar.

Era uma espécie de guru. Um conselheiro. Dava palestras motivacionais em centenas de empresas pelo país. Nunca andava de carro, avião, moto ou bicicleta. Cruzara o país, sempre a pé. Máquina melhor que minhas pernas, dizia, ainda não criaram. Sua alimentação resumia-se apenas a pão, água e frutas. Dormia sobre um pedaço de estopa de linho, apenas para forrar o chão. E afirmava estar com 120 anos. Vivia assim desde os seus vinte e poucos. O que o levara a essa vida de abstinência fora uma frase dita por um mestre seu, quase 100 anos atrás. Uma única frase que o tirara do materialismo e o levara para essa vida de abstenção e redenção. E era essa a frase que ele tinha a dizer aos 12 vendedores naquela sala, frase esta que mudara sua vida, e que mudaria a vida deles também.

Quando abriu a boca para enunciar a miraculosa expressão, arregalou os olhos que ficaram congelados diante da dor que se espalhava em seu peito. Antes mesmo de fechar os olhos, o velho desabou. Gritaria, correria, pedidos de socorro. Mas era tarde. O velho infartara, ali mesmo, no meio de sua palestra.

Algumas pessoas na empresa ficaram em choque, ao ver o corpo sendo conduzido para fora. Outras choravam. A maioria, sem palavras. Mas os 12 vendedores se entreolhavam e pareciam muito aliviados.

Afinal, se aquela frase induziu o velho a ter tal vida de extrema restrição, graças a Deus que ele enfartou antes de pronunciá-la.

Os antissociais I

— Alô?
— E aí?
— Fala, grande.
— Que tá fazendo?
— Nada. Debaixo das cobertas.
— Hum. Sei.
— E você?
— Na mesma.
— Um saco, hein!
— Pois é. Liguei pra isso.
— Isso o quê?
— Ah, sei lá. Esse tédio.
— Pra variar né?
— Vontade acabar com isso tudo.
— Isso tudo o quê?
— Com esse tédio, cara.
— Vá ler um livro.
— Outro?
— É, um saco!
— E como! Já foram três essa semana!
— Poxa.
— Tá a fim de sair?
— Nem. Pra onde?
— A festa da facul.
— Ah, nem vou. Tô debaixo das cobertas.
— Só sair daí.
— Nem. Só saio daqui amanhã cedo.
— Eu tô a fim de ir.
— Você vai?
— Não disse que vou. Disse que estou com vontade.
— Mas você vai?
— Ah, sei lá.
— Fazer o que lá, cara?
— Fazer o que aqui?
— Vá ler um livro.
— Você não se incomoda com isso?
— Isso o quê?
— Ficar dias e dias enfiado nesse quarto. Você é um ser humano ou uma ameba?
— Ó quem fala.
— É disso que estou falando.
— Eu não sou uma ameba.
— Amebas são mais sociáveis, isso sim.
— São?
— Devem ser. São mais populares que nós, pelo menos.
— Se são. Você vai?
— Pensando. Dá medo.
— E eu não sei?
— Vai ter muita gente estranha lá.
— E como! Você vai?
— Se você for, eu vou.
— Eu não vou.
— Por que não?
— Nem a pau. Muita gente. Gente estranha.
— A gente se enturma.
— Certeza?
— Bom, acho que não. Mas a gente tenta, pelo menos.
— A gente tentou ano passado, lembra?
— É.
— Não deu em nada.
— É.
— Os dois largadões lá no meio sem saber o que fazer.
— É.
— Olhando um para a cara do outro. No mesmo lugar durante duas horas.
— Se ao menos a gente soubesse dançar.
— E quem ia querer dançar com a gente?
— Pior. Fiascaço.
— E como!
— Melhor deixar essa ideia pra lá, né?
— Melhor mesmo.
— Mas, o que eu faço nessa porcaria de sábado?
— Ah, sei lá. Faça o mesmo que eu.
— OK.
Desligou, e foi ler um livro.
Um saco!

Diário de Manolo DDA I

Crônica humorística – Diário de Manolo DDA

Diário de Manolo DDA - Crônica Humorística

Infame Diário,

Hoje é quarta-feira, um pós-feriado. Não precisa ser um gênio pra perceber que isso me desanima. Meu humor já denuncia isso. Mau humor, ressalvo. E o que esperar de pós-feriados que sempre começam com a mesma perspectiva das segundas-feiras: uma semana inteira (ou o restante dela) de encheção?

Se você, bastardo diário, acha que sou um reclamão exagerado, deixe-me contar-lhe um pouco dessa quarta-feira que eu prefiro rotular como fossa.

Não acordei legal. Dores nas costas por causa da minha lordose. Ou seria cifose? Tem hipercifose também, não tem? Depois vou conferir no Aurélio. Eu sempre confundo esses prefixos. Vou me concentrar nos sufixos, então. Neles, eu me garanto. Minha “ose” me incomodava pela manhã. Levantei, tomei café e saí de casa. Ali já percebi que havia algo de errado. Toda aquela aglomeração. E eu assustado. O terapeuta psicótico diz que isso é síndrome do pânico. Tá bom.

Mas o pior estava por vir, patético Diário. Dentro do ônibus, a pior coisa com que já me deparei. A propósito, por que sempre te chamo de Diário com maiúscula? Viu? De novo! Que porcaria.

Onde eu estava? Ah, o ônibus. Aglomeração. Falta de ar. E então aconteceu. Aquela visão dos infernos. Era… era… o que era mesmo? Recapitulando. Eu entrei no metrô. Estava lotado. Ou não estava? Vamos tentar de novo. Vou até abrir um novo parágrafo para facilitar o fluxo de ideias.

Eu entrei no avião. Estava vazio e eu me sentia a vontade. Livre, leve, senhor de mim mesmo. Ali tive a impressão de que essa quarta-feira seria um ótimo dia. E não me enganei.

Afinal, eu nunca me engano, queridíssimo Diário.

DDA é a mãe!

Quando se olha no espelho, você só repara nessa carapaça decadente que envolve seus músculos e órgãos desgastados, ou vai além?

Vou lhe dizer o que faço. Olho para meu rosto. Tá lá. No espelho do meu quarto. O que há atrás do olhar lânguido, das olheiras, da pele ressequida e cansada de tantas inúteis primaveras? Lá se esconde o lobo frontal. Controla minhas ações, meus movimentos, a estratégia. Se vou adiante, um passo atrás ou se devo fincar os pés aqui. É o grande responsável. Por vezes, o grande culpado. Investi em poupança em vez de em debêntures? Péssimo investimento? Maldito lobo frontal.

DDA é a Mãe - Crônica Humorística

Os lobos occipitais me fazem delirar. Estímulos visuais e essa coisa toda. Pegam aquela matéria monumental e entalham em minha memória. Sabe aquela loira, os cabelos revoltosos ao vento, seu caminhar como a dança de uma bailarina sob doce sinfonia? Pois é, que loira! Bendito occipital!

Há os temporais, também. E os parietais. Isso tudo junto pesa 2% do meu corpo. Mas recebe 25% do sangue que é bombeado pelo coração. Funciona a contento. Estou convencido que sim. Mas nem todos. Nem todos, eu digo. E reafirmo.

Meu terapeuta não vai com minha cara. Com a carapaça, digo. E, por extensão, nem com meus lobos. Tem sempre uma doença pronta para me presentear. Parece carregar algumas na manga. Eu chego lá, digo algo e ele saca alguma disfunção tão rápido quanto John Wayne sacava uma pistola. Psicopatologias. Não estou feliz com minha carapaça, e ele diz que tenho transtorno dismórfico corporal. Me atrapalho numa leitura qualquer, e tenho dislexia. Invejo alguma habilidade animal, e ele vem com licantropia clínica.

E a última foi culpa da carteira. Na verdade, culpa da minha distração. Distração não é doença. Ou é, e eu perdi metade do filme? Onde está a carteira, eu me perguntava. Nem cá, nem ali, nem lá. Desisto. Fui ver, dentro da geladeira. Que maravilha! Contei pro tragicômico – que ideia a minha também! – e o que ele disse?

– Você tem DDA.

– Quem?

– DDA: Distúrbio do Déficit de Atenção Sem Hiperatividade.

Pronto! Coloco a carteira na geladeira por distração, e tenho essa tal DDA. Era o que faltava. Mas até que saiu barato. Do jeito como ele me soma patologias, foi milagre me diagnosticar “SEM hiperatividade”. Tá certo que não foi exatamente um incidente isolado. Já coloquei sorvete no micro-ondas. E sou incapaz de manter uma conversa por dois minutos sem me distrair. Mas sou um homem muito ocupado. Milhões de coisas na cabeça. Turbilhões. Estresse. Essas coisas. Isso não é doença. Isso é falta de praia. Isso é falta de…

Onde eu estava?

Ah, eu falava da garota. Rebeca. Que nome! Não dá pra ter um nome desses e não ser monumental. Um metro e setenta. Cabelos vastos e esvoaçantes. Olhos grandes e magnetizantes. Nos olhos dela, corre um letreiro: “Eu Sei Que Seus Occipitais Estão Atordoados”. E como estão, baby! E como estão!

Jantar, eu e ela. Tremo. Quem não tremeria? Até a chama da vela sobre a mesa é trêmula. Mas meu terapeuta diz ser fobia social. É mesmo um fanfarrão! Ela estende a mão sobre a mesa. Não toca a minha. Estende a mão e olha ao redor. Espera que eu tome a iniciativa. Isso se chama “charme”. Eu? Bem, felicidade em cada poro. Quem não estaria? Mas o terapeuta me alertou:

– Felicidade tem de ter os pés no chão, Manolo. Felicidade sem razão aparente é um dedo no gatilho.

Distúrbio bipolar. É o que ele diz. Se é invadido por alegrias sem razão, é bipolar. Terapeuta chato. Mas não é esse o meu caso, obviamente.

Que caso?

Enfim, onde eu estava?

Ah, a receita.

É preciso primeiramente fritar o camarão e então deixar escorrer. Após isso, refogue em fogo alto com cebolinha e gengibre. Depois é só servir.

Como? Eu não lhe falei sobre a receita de camarão? No que você estava pensando na última meia hora que gastei dois litros de saliva lhe ensinando essa receita centenária de minha família?

A propósito, quem é você?


Seu idiota favorito

Você me contou como sempre fui seu idiota favorito
A criança de semblante estagnado
Um certo erro, um erro acertado
Uma lembrança a ser esquecida
Frases desconexas
Que jamais formam uma oração.

Pareceu-lhe mais fácil se apresentar em outros circos
E conquistar a escuridão de sonhos impossíveis
E cruéis desfechos
Palavras lhe soaram dispensáveis
Apelos lhe pareceram engraçados
Toda essa sina de bem cuidar
Cansou sua mente aventureira
E seu desejo de romper grilhões
E conhecer um mundo distante
Que não fosse tão covarde quanto o meu.

Hoje te vejo se arrastando
Por entre entulhos neste velho chão
Respirando a discórdia, se entorpecendo com solidão
Fitando as paredes brancas do seu quarto
Olhos vidrados, pequenos remorsos em coesão –
E será que valeu a pena negociar seus sonhos
Por uma alegria passageira
E fantasmas eternos?

E hoje, apenas te vejo tropeçando
Desajustada, neste mesmo velho chão
Chorando apelos, fazendo promessas, implorando migalhas
Acredito que o que perdi me perdeu
E o que me perdeu jamais poderia me fazer encontrar
A suavidade de novamente estar em pé
E ser para alguém que nem sei quem é
Mais uma vez, o seu idiota favorito.

DIÁLOGOS FILOALCOÓLICOS DE LUCKÁ E MESSINA – II

Tirinha engraçada

Tempo

Filtrava-se como se pudesse se esquivar da fúria do Tempo. A fúria das horas. A fúria que aflora nas horas de solidão. Era inócua aos seus medos. Mas determinada diante dos seus objetivos.

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Infinito passivo

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DIÁLOGOS FILOALCOÓLICOS DE LUCKÁ E MESSINA – I

Tirinhas Engraçadas

Sonho é pesadelo

Era um homem sem sonhos. Noites desprovidas de calor, paixão, intensidade. Apenas um  dormir descolorido,  descompassado. Durante o dia, o Nada lhe acariciava. Como uma companhia entediante que não se afasta.  Caminhava horas e horas pelo asfalto, o calor retumbando sua testa engelhada. Esperava a noite, esperanças. Esperava sonhar. Acreditar em elementos desgovernados numa mente livre e criativa. Acreditar ser outra pessoa,  outros planos,  outros toques. Mas, no dia seguinte, apenas o nada. Nenhuma lembrança. Nenhum sonho.

Certo dia, conheceu a garota que só tinha pesadelos. Rapaz sem sonhos conhece menina de sonhos aflitivos. Ele, caminhando distante. Ela, apavorada. Como se tudo o que se movesse fosse ganhar a forma do monstro do último pesadelo, noite passada.

Do contato, nasceu a simpatia. Desta, a dependência. Desta última, o amor. Ele lhe acordava na hora dos pesadelos mais terríveis. Ela preenchia as noites dele com o relato do que sonhara. Noites amenizadas para ela, noites intensificadas para ele.

Eram  caminhos  diferentes  que  se  cruzavam,  e  se alimentavam. Tentavam manter-se, por instantes eternos, na mesma direção. E até poderiam caminhar pela mesma estrada,  mas estavam cientes de que nunca pegariam carona no mesmo caminhão.

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