Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Category: Crônicas Pequenas (page 2 of 2)

Textos Curtos e Crônicas Pequenas da Literatura Corrosiva

Crônicas Pequenas da Literatura CorrosivaO tempo escasso. Com pernas amputadas. As 24 horas já não são vinte e quatro horas. Perderam espaço e identidade. Hoje é preciso objetividade. No mundo do pouco tempo, pouco tempo nos resta. Então, cuide de cada segundo como a preciosidade que nunca mais lhe voltará ao colo. Como Crônicas Pequenas escolhidas para enriquecer seu dia.

Neste blog, tento deixar meu lado prolixo, e assumir a brevidade que todos procuram.

Se o seu relógio avança impiedosamente, mas está decidido a mergulhar no mundo da literatura, deixo-lhes aqui, minhas Crônicas Pequenas. Talvez não sejam tão pequenas quanto gostariam, mas são crônicas de um mundo breve, e pequenas brevidades.

FERIDAS ANTIGAS

Na longa espera, esperava o retorno de quem há muito partira. Os olhos dela eram um espelho das lágrimas derramadas, noites mal dormidas. O silêncio lhe tirara o sol, lhe embriagara o sangue. Sangue que não mais corria. Rastejava-se, lânguido, por entre veias ressequidas, sem muita ideia de para onde ir. A Terra em constante movimento, mas ela estática. O amor lhe traíra. Uma faca em seu peito num momento de distração. Seus pés fincados no chão, as solas grossas, amalgamadas ao concreto frio.

Num certo dia, parou de olhar ao redor. Concluiu que o passado foi feito para ficar lá atrás. Um instante destruído não poderia ser eternizado. Não poderia lhe corar as faces. Nem tombar sua consciência.

Feridas AntigasEm anos, pela primeira vez, o futuro lhe sorriu. A sombra que se lhe fizera renegar, agora, derretia-se ante a intensidade que ela mesma carregava em estado natimorto. Soergueu-se no impacto do desejo, e descobriu-se apaixonada por si. Quando segundos ficaram para trás, seus pés caminhavam apressados rumo ao horizonte que lhe convidava.

No caminho, encontrou com ele – ELE, a razão de todo seu sofrimento. Ele sorriu-lhe feridas antigas, pediu-lhe perdões impossíveis, jurou-lhe promessas que não cumpriria. Por um instante, ela parou. Recorreu ao que antes ignorara: uma análise criteriosa da situação. Após pensar e meditar, sorriu-lhe acidez e despediu-se dele com um retundo:

– Vá pastar!


SONHOS EM COMA

Sonhos em coma. O medo já é rotina, como um ator principal. As gargalhadas estão ausentes da cena, cedo demais. Deveriam estar aqui. Poderiam estar. Um quinto, que fosse. De mãos dadas aos sonhos. Ainda que em silêncio. Ainda que carente de atenção. Onde foste parar, esperança? Por que não esperaste um pouco mais? Na sua ausência, chegou o tédio. Espalhou-se como gangrena. Esgotou um corpo. Carências e pele ressequida. Queria te ver. Eu poderia te ver. Te resgatar dos seus grilhões. Te trazer de volta a luz. Salvar-te de crônicas narrativas decadentes, para que possas me salvar. Sem você, esperança, pelo que devo esperar?

Sonhos em coma

OS ANTISSOCIAIS II

Os Antissociais

– E aí?

– E aí?

– Fazendo?

– Nada.

– Também.

– Vai sair?

– Nem. Cansado pra burro.

– O que fez?

– Ah, sei lá. Fiz nada, não.

– Então tá cansado do quê?

– Sei lá. Dessa paradeira, deve ser.

– Então por que não sai?

– Porque tô cansado.

– Então sai que descansa.

– Ninguém sai pra descansar.

– Então fica em casa, caramba.

– Pô, mas isso cansa pra burro.

– Cara, tu fala umas coisas nada a ver.

– Tipo…?

– Tá cansado, mas não fez nada.

– E isso não cansa?

– Então descansa.

– E o que tô fazendo?

– Então não reclama.

– Quem tá reclamando?

– Tá, deixa quieto.

– E você? Vai sair?

– Nem.

– Por que?

– Ah, você me cansou.

Crédito Foto: Bobbi Dombrowski

ETOGENIA

Quando a intensidade lhe cobriu os olhos naquele novo formato, deixou-se guiar pela profusão de novos sonhos. Era uma experiência nova, uma aquisição há muito esperada, novos parágrafos acrescidos à etogenia. Por entre a tensão e a alegria de rever os contornos que lhe emudeciam os olhos, descobriu-se adepto do que um dia, já desistira de esperar: o verdadeiro amor.

SEM TEMA

O vento lhe tocou os cabelos no mesmo instante em que percebeu que o dia havia nascido. Mas qual dia? Poderia encarar novos céus, mas se derramava litros de tinta sobre seus olhos cansados, ora desnudos, ora velados. Preferiria mergulhar em crônicas pequenas, em vez de encarar a realidade cansativa que lhe rasgava sonhos.

Contemplando a solidão travestida de noite, sorria-lhe a vizinhança disforme entre fumaças e sorrisos embriagados. Os rostos lhe pareciam distante. As peles se comutavam entre luzes e ausências, alternadamente. E os muros da cidade se apossavam das almas ansiosas.

No mesmo instante em que percebeu que o dia havia nascido, o vento lhe tocou os cabelos.

Sem Tema

Por Ela

Ela me sorriu com o semblante. Parecia a criação duma nova estação. Um novo estado, entre o líquido e o gasoso. Entre o silêncio e o zumbido. Entre a solidão e sua companhia.

Escondi meus deletérios, deletei medos e intempéries. Artesão que sou, recriei-me a partir de inéditas matérias-primas, primeiro a matéria, depois as rimas. A clara evidência de sua pureza em clarividência. Opaca estação dando lugar à exata estação ela. Ela estar. Estado de estar perfeição. Perpetuar o ão de purificação.

Nela, me perpetuação. Me contemplação. Me ela são.

Por tudo o que ela quis.

Por ela, me refiz.

Parte do Céu

Menina no labirinto. Lábios conjugam movimentos. Um pedido de socorro. Mil vezes infinitivo. Seu desespero corre em suor pelo seu rosto. Gosto de sal, mal posto. Seus pés vacilam, pé ante pé a pé. Pela fé. Perdida, pede socorro. Ecoa a voz. Soa a sós. Ecoa… e ecoa… e ecoa…

Menino ator. Molda-se. Cria-se. Atua dor, amor, terror. Não a engana. Não a esgana. Perde-se, mas jura achar-se. E promete à menina perdida, a saída.

Menina no labirinto. Perdida. Agora, pedida. A mão dele estendida ao seu alcance. Oferece-se. Promete-lhe. Vida. Parte do céu. Segurança. Um véu.

Menino ator pega mão da menina no labirinto. Sorriem.

Ela. Sai do labirinto. Torna-se atriz. Vida. Um sentido. Segurança. E abandona menino ator.

Ele. Refugia-se no labirinto. E cobre o rosto com o véu da menina que hoje é parte do céu.

 

Garota brasa

No elevador.

– Bom dia!

– “Bom dia” por quê?

– Só estou te desejando um bom dia.

– Por quê?

– Oras, eu não posso te dar bom dia?

– E eu não posso perguntar porque está falando isso pra mim?

– Simplesmente porque eu quero que você tenha um bom dia.

– Por quê? O que eu te fiz?

– Como assim?

– Você está me devendo alguma coisa?

– As pessoas costumam dar bom dia para outras, querida.

– Ah é? Eu não faço isso. Pelo menos, não com estranhos.

– Mas eu não sou estranha.

– Como não? A gente nem se conhece.

– Pensei que trabalhássemos no mesmo prédio. A gente se vê quase todo dia.

– Mas isso não nos torna amigas.

– E só amigos dão bom dia?

– No mínimo. Eu vou dar bom dia pra quem não conheço? Vai que é um psicopata, um assassino. Eu vou lá querer que ele tenha um bom dia? Eu quero mais é que se exploda.

– Puxa, valeu. Quer que eu me exploda também?

– Se continuar me incomodando quem vai explodir sou eu.

– Te incomodando? Mas eu só disse bom dia.

– E você fala “só”? Só falta agora querer me dar beijinho, também. Odeio que me toquem, já vou avisando.

– Ah, mas pode deixar, sua azeda. De hoje em diante nem te cumprimento mais.

– Azeda, eu? Você que me vem com essa cara de sonsa, e com esse bomdiazinho meloso e falso, e eu sou azeda?

– Falso?

– E digo mais: por não me cumprimentar, você vai me fazer um grande favor. Até porque já tô por aqui com essa sua vozinha de taquara rachada.

– Ah, sua… sua…

– E aproveitando: esse seu perfuminho de rodoviária me dá náuseas, garota. Experimente ficar só no sabão de coco que eu garanto que vai melhorar.

– Escuta aqui…

– Se não percebeu, querida, este é o seu andar. Até logo.

A senhora educada, agora profundamente irritada, sai do elevador batendo os pés, furiosa com os comentários da “garota ácida”. No mesmo andar, um elegante rapaz entra no elevador e se dirige à garota:

– Eita… Bom dia! O que deu nessa daí?

– Ah, acordou azeda, só pode. – Após uma breve pausa, arrematou: – A propósito, “bom dia” por quê?

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