Os dias tensos perdem força diante do caos real do hoje. Não é nítido recuperar o passado em palavras, e contar a um estranho. A tendência é se esconder, desaparecer entre a chuva e o medo. O psicólogo tem cara de psicopata. Me lembra Dr. Lecter. Será que ele vai degustar parte do meu rosto durante uma de nossas conversas? Hoje, a terceira consulta.
– Você precisa confiar em mim, Messina. – A voz dele é a voz do soldado Pyle, em Full Metal Jacket, na cena do banheiro. Fico feliz por ele não ter dito: “Hi, Joker”.
Melhor o senhor não confiar em mim, doutor. Penso. Não digo. Prefiro não ameaçar esse homem, ou ele pode pular em cima de mim, arrancar meus olhos, mastigar minha esclera, sugar o canal hialóideo, e se lambuzar com minha fóvea central. Existem tensões que podem ser evitadas. E outras que nem deveriam ser cogitadas.
As paredes do consultório são verdes. Um verde musgo. Verde mórbido. Lembram hospital. Supuram pensamentos inquietantes. Daqueles que deixam a gente se remexendo feito um cachorro sarnento na cadeira.
– Me conte sobre seu dia, Messina.
Chego tomar um susto. Ele não pede. Ameaça. Só faltou colocar uma arma na minha cabeça e salivar.
– Meu amigo imaginário não deu as caras hoje.
– Que bom!
– Em outras palavras, não conversei com ninguém.
– E a garota que você disse que ia convidar pra sair? Vai dizer que amarelou?
– Se eu continuar amarelando desse jeito, doutor, vou acabar virando um Simpons. – Dou uma risada alta e ele continua sério. Então, me recomponho e continuo: – Descobri que ela tem namorado.
– Mesmo?
– Fiquei mal pra burro.
– O que não é novidade. – Às vezes, acho que o safado está de sacanagem com minha cara. – E o que você fez?
– Eu liguei pra um amigo. Pra conversar.
– E…?
– Deu telefone inexistente. Fazia anos que não nos falávamos.
– Ah.
– Aí, só me restava procurar meu irmão.
– Mas você não disse que não tem irmãos?
– Será que foi por isso que ele não me atendeu? – Dou uma gargalhada, rindo da minha piada.
Ele não. Ao contrário, fica me olhando com cara de quem está pensando: “Você é um caso perdido, seu louco varrido”. Se ficasse por isso, estava bom. Afinal, em seguida, ele soltou um grunhido, mostrou as unhas e voou pra cima de mim.