Era eu mesmo. Num despertar bestialógico. Cansado de noites mal dormidas, de eras mal vividas. Cansado de estar cansado de estar cansado. Era-me eu. Era-lhe eu.
Era eu mesmo. Num despertar bestialógico. Cansado de noites mal dormidas, de eras mal vividas. Cansado de estar cansado de estar cansado. Era-me eu. Era-lhe eu.
Estava farto de livros de auto-ajuda. Cansado de frases de efeito que entulhavam Facebook. Extenuado de e-mails em massa com mensagens positivas, melosas, otimistas. Seja um conquistador. Seja um vencedor. Seja o rei do mundo… blá, blá, blá. No fundo, achava que tudo não passava de uma tentativa de negar a beleza da simplicidade das coisas. Ou talvez as pessoas só estivessem camuflando o desespero que vive sob seus travesseiros.
De nada adianta teus vis apelos. É frágil tua intempestividade, teus lábios secos. Tua fama decai, teu anelo se esvai. É a pele morta, teu toque sem folículos pilosos. É o agreste em teus olhos, é um selo em tua boca. Roxa. Falsa. Palavras pútridas. Dançando no escuro. Com estranhos. Com fantasmas. Reverenciando teus atos pobres e carentes. Teu andar sofrível. Pauperizadas baratas em teu domínio. Teus olhos magros desperdiçam comédias, acumulam tragédias. É o drama de te acompanhar, e dissecar teu coração. Pedra. Vão. Uma vez em si outra em vão. Um fascínio cego, um amor bastardo. Daqui pra frente, sou eu e meus sonhos. É você e seus fantasmas.
Desde criança, um estranho hábito: colecionar crônicas. Quando criança, eu pensava ser sonhos. Assim os descrevia: “eu coleciono sonhos”. Uma época onde as letras ainda não haviam se convertido em bits. Na biblioteca da escola, na pública, na particular de casa. Cópias a mão. Gostava de crônicas curtas. Fácil de ler. Fácil de copiar. O vício começou com Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo. Nunca explorava estrangeiros. Queria contemplar a nação até o enfado. Queria. Precisava. Mas como este dia nunca chegou, viajei Rubem Braga e Nelson Rodrigues, conquistei Carlos Heitor Cony e Mario Prata.
O encanto lhe dosava a face na proporção com que lhe convinham os sonhos. Dia metade, dia todo, a verdade suavizada pelo clamor visceral de suas entranhas.
Dia epagômeno. Ruptura no tempo/espaço. Típico dia ovelha-negra. Nem precisaria ter vindo a existência. A sensação de que muito poderia ter sido feito, mas nada se criou (ou recriou). Dia vago, vagando por aí, me deixando vasto de vacilação.
Passei o dia pensando nela. Ela que conseguiu suavizar o ar arenoso, o paladar escamoso. Ela que redecorou a cena, improvisou novas falas, atribuiu novos personagens, quando eu já imaginava ter a peça chegado ao fim. Ela que soube ditar as rimas, preencher as rupturas, cadenciar a batida do meu coração. Como se novos textos lindos pudessem ser reescritos a cada segundo com o mesmo semblante em vigor.
Na sua ausência, sinto falta de mim, sinto falta de ti. Imaginar seus pensamentos em outros quintais, me deixa averso a conhecer verdades e revelações. Preferiria que a verdade fosse aquela que costumo emoldurar nos momentos de solidão, iluminado por um quarto escuro, quando posso me expressar e me iludir.
Queria que estivesse aqui. Sua ternura recoloca planos sobre a mesa. Infla meu peito de coragem, desejo de criar, ânsia em cumprir. Seu sorriso me contempla esperançoso. Suas palavras me preenchem harmonia. Sem saber seus rumos, e como lhe perseguem outros quintais, fechei-me aqui e declararei para sempre o hoje, um dia epagômeno.
Certo dia, ao acordar, descobriu-se outra pessoa.
Primeiramente, estranhou o aroma que impregnava o ar. Era um cheiro de novo, esmero, limpeza. Percebeu um odor suave, talvez doce, amadeirado. Perfume, certamente. De quem seria? Dele, não mesmo. Tinha alergia a essas frescuras. O lençol cheirava a lavanda… mas ele não havia vomitado meio litro de álcool e porçõezinhas, antes de cair desacordado? Lembrava-se muito bem. Uma roda de amigos, noite passada. Barzinho da esquina. Só ele: 10 latinhas de cerveja, duas caipirinhas, um vermute, porção de salame, de presunto, de camarão e de calabresa. Depois só alguns flashes. Dois tombos na rua. Uma queda na escada ao subir para o apartamento. A testa sangrando. Vomitando tudo na cama. Deitando em cima e… nada mais.
Olhou ao redor. Estava em casa. Os mesmos móveis. Tudo no seu devido lugar. Mas não exatamente tudo. As latas de cerveja que decoravam o chão haviam desaparecido. Nenhuma bituca de cigarro sobre a cama. Nenhum escarro esverdeado ressequido sobre a parede, agora branca, mas outrora, quase toda esverdeada. A mesa estava limpa. As cortinas estavam limpas. Ele estava limpo.
Deu um salto da cama e ficou de pé. Ereto, como um ginasta. Habilidade? Equilíbrio? Estranho. Nessas horas, costumava tropeçar, catar cavaco pelo quarto apertado, bater a cabeça na porta e xingar todas as almas. Aquela disposição, aquela limpeza, começou a lhe preocupar pra burro.
Correu para o banheiro – sem tropeçar, sem cair. Que estranho! Ao olhar no espelho (que não estava coberto de manchas brancas) viu outro rosto. Não era ele. Na verdade, até era ele. Mas não era. Este tinha cabelos. Mas não havia raspado a cabeça na semana anterior por causa das pulgas e piolhos? Havia raspado as sobrancelhas também (achava bonito ser grotesco). Mas agora elas estavam ali, caramelo escuro, cuidadosamente assentadas acima dos olhos estupefatos que não acreditavam no que viam. Não havia o familiar olhar lânguido, a boca entreaberta, nem restos de salame e queijo pútrido grudados em seu queixo, após a última regurgitada antes de desmaiar. Enfim, o inferno, era uma outra pessoa.
Sonho, sonho, pensou. Deve ser um maldito sonho. Mas não era. As sensações estavam ali, em todos os detalhes. Cerrou os olhos. Socou a parede. Gritou de dor. Abriu os malditos olhos. E lá ainda estava a figura confiante no espelho do banheiro.
Melhor tomar algo pra dar partida no cérebro. 200 ml de vodka resolveriam, pensou, modesto. Mas não encontrou o divino elixir. Nem na mesa, nem na geladeira, nem em qualquer outro canto. Muito menos cerveja, vinho, aguardente, ou qualquer porcaria que tivesse estampado no rótulo seu grau alcoólico. Ao contrário, só encontrou uma nojeira de dar nó no estômago: sucos e sanduíches naturais. Pegou uma destas garrafas plásticas, na geladeira. No rótulo, lia-se: melancia com uva e hortelã. Se estivesse pensando em parar na UTI, dois goles bastariam.
Correu pra gaveta. Um cigarro, por favor. Precisava de um cigarro. Mas só havia chicletes sem açúcar e barras de cereal. Sobre o armário, flocos de aveia e soja. Sobre a geladeira, uma bandeja com banana e laranja. Começou a se sentir tonto. Ia desmaiar. Normal. Costumava desmaiar de bêbado todos os dias. Chegou a girar os olhos simulando um desmaio, bambeou propositadamente as pernas, mas… não desmaiou. Bem que tentou, é verdade. Mas não conseguiu. Pelo contrário, nunca se sentira tão bem. Tão disposto e jovial. E isso estava lhe deixando muito mal.
Voltou para o espelho, e o sr. Saúde ainda estava lá, cada vez mais corado. No desespero, começou a chorar. A bem dizer, apenas tentou. Não saíram lágrimas. Fez todo o esboço, a cena típica: sentou-se na cama, curvou-se sobre as mãos espalmadas, deu um retundo: aaaaaaaaaaaahhh, mas não chorou. E como haveria de chorar? Não havia deficiências emocionais nele. Sentia-se forte, confiante, corajoso. E esta porcaria estava deixando ele tremendo de medo.
Tentou lutar contra aquilo. Acordar, voltar ao seu mundo. Sentir o cheiro azedo no ar, a cama úmida, a cueca pesada e a certeza de que precisava usar fraldas. Este era o seu mundo. Seu lar. Um lugar onde era rei.
E de repente, o pior aconteceu.
Foi invadido por um desejo gigantesco. Uma força propulsora rompendo seu interior. Uma ânsia guiando seu corpo numa só direção. Ele gritava “não, por favor, não”, mas o desejo era de uma intensidade trovejante, dominando-lhe os músculos, escravizando seus ossos. Ainda que lutasse, não resistiu.
O corpo foi sendo arrastado pelo desejo em direção a cozinha. Abriu a geladeira, contemplou a garrafa e salivou de desejo.
– Por Deus, nããããããããããããooooo!! – gritou, antes de entornar a garrafa, e tomar o suco de melancia com uva e hortelã num gole só.
Ela puxou a pele da gordura malar, termo nada obtuso para a maçã do rosto, exibindo uma caricatura não tão distante da figura difusa que se tornara. Esticada, retesada, parecia-lhe menos agressiva. Manteve a bochecha esticada. Ainda se lembrava? Onde fora parar sua juventude, seu vigor? Uma busca nos esgotos fétidos revelaria algo? Deixou a bochecha, e foi até os olhos. Camadas de gordura e células mortas contornavam seus encantadores olhos azuis. Na verdade, contornavam, tempos atrás. Hoje, apenas camuflavam qualquer beleza dantesca que outrora ali residira. Resolveu aplicar o mesmo truque da bochecha nos olhos. Esticou a pele. Flacidez sem fim. Esticou. Por uma fração, percebeu uma mudança. As rugas pareciam se ocultar, mas a mancha escura se tornava mais coesa. As mãos tentavam, ora aqui, ora ali, descompassar inutilmente aquilo que o tempo impiedosamente lhe infligira como uma carga impossível de se carregar. Achou-se incapaz. O bisturi fizera algumas mudanças, é verdade. Mas não lhe devolvera aquilo que sua ambição tanto desejara: sua juventude, seu alvor. Apenas substituíra a velha e velha velhice por um rosto falso, inexpressivo, máscara putrescível. Seus seios haviam perdido a batalha para a gravidade há muito e muito tempo. Os quadris se alargavam numa velocidade impressionante, quase escapando ao acompanhamento policial de seus olhos investigativos.
Fora uma jovem normal, é verdade. Então, onde errara? A conclusão não era difícil. Quando os planos se tornam mais intensos que a realidade, a porcaria está feita. Em certa manhã, no ápice de sua juventude (e de sua imbecilidade), achou que tudo podia ser resumido a fórmulas matemáticas. Colocou tudo no papel. Prós e contras. Seria atriz, escritora, turista de 10 países, a página principal do Jornal da Felicidade e Utopia Inacessível Para Reles Mortais. Nessas horas, a pessoa se esquece que está apodrecendo aos poucos. É invadida pela chama falsa dos deuses do Olimpo. Teores de imortalidade. Odores de invencibilidade. Mal percebe o corpo recurvado, dia após dia. Mal percebe o hálito apodrecendo. A visão começa a lhe trair a percepção. Os passos já não tropeçam em obstáculos. Mas em si mesmos. Na fase infantil do registro de sonhos na caderneta, achara que seria a esposa perfeita, mãe aos 30, filha exemplar. Quando o tema das conversas fosse os bem-sucedidos, seria sempre apontada.
Mas quando começou a se esquecer de coisas pequenas (havia sido uma garota de memória invejável) percebeu que algo estava errado. O tempo parecia errado, não ela. Ele havia disparado, e a deixado para trás. Tempo traiçoeiro. Ela correu atrás. Tentou alcançá-lo. Correu. Correu. E se cansou. Não havia mais tempo. Ele se esgotara. Ela também. O vigor já não existia. Os planos se provaram falhos e infantis. Cansou-se. A corrida estava acabando, e ela era a última colocada. Xingou o tempo.
Pensou melhor, e xingou a si mesma.
Sentou-se, gemendo e praguejando. Lombalgia. Dores nas regiões lombares ou lombossacrais. Ela costumava chamar de “maldita dor dos infernos”. Hoje era difícil definir o que doía. Os dentes doíam, o pulmão doía, os pés doíam. Toda sua alma, enfim. O que não doía, latejava.
Do que se arrependia? De tudo. Principalmente, por ter sonhado o impossível. Ah, o impossível. O Olimpo. A altivez. Besteira! Hoje, sozinha. O marido morrera anos atrás. Mas as fragilidades estavam bem vivas. Sem filhos, restara-lhe a casa. A casa. Ela. E seus fantasmas.
Pensou em escrever sua história. Um registro para a posteridade. Não que alguém fosse se interessar. Mas seria seu desabafo. Pensou num título. Ocorreu-lhe um. Botou no papel: “Vida, Lutas e Derrotas de uma Guerreira”.
Se não fosse uma partícula de orgulho sobrevivente, teria escrito: “Lamentável Saco de Refugo”.
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