Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

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Cronicando

Desde criança, um estranho hábito: colecionar crônicas. Quando criança, eu pensava ser sonhos. Assim os descrevia: “eu coleciono sonhos”. Uma época onde as letras ainda não haviam se convertido em bits. Na biblioteca da escola, na pública, na particular de casa. Cópias a mão. Gostava de crônicas curtas. Fácil de ler. Fácil de copiar. O vício começou com Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo. Nunca explorava estrangeiros. Queria contemplar a nação até o enfado. Queria. Precisava. Mas como este dia nunca chegou, viajei Rubem Braga e Nelson Rodrigues, conquistei Carlos Heitor Cony e Mario Prata.

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VIDA – DE ONDE VEIO ESTE SENSO DE HUMOR DOENTIO?

O encanto lhe dosava a face na proporção com que lhe convinham os sonhos. Dia metade, dia todo, a verdade suavizada pelo clamor visceral de suas entranhas.

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Para você, para sempre

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DIA EPAGÔMENO

Dia epagômeno. Ruptura no tempo/espaço. Típico dia ovelha-negra. Nem precisaria ter vindo a existência. A sensação de que muito poderia ter sido feito, mas nada se criou (ou recriou). Dia vago, vagando por aí, me deixando vasto de vacilação.

Passei o dia pensando nela. Ela que conseguiu suavizar o ar arenoso, o paladar escamoso. Ela que redecorou a cena, improvisou novas falas, atribuiu novos personagens, quando eu já imaginava ter a peça chegado ao fim. Ela que soube ditar as rimas, preencher as rupturas, cadenciar a batida do meu coração. Como se novos textos lindos pudessem ser reescritos a cada segundo com o mesmo semblante em vigor.

Dia Epagômeno

Na sua ausência, sinto falta de mim, sinto falta de ti. Imaginar seus pensamentos em outros quintais, me deixa averso a conhecer verdades e revelações. Preferiria que a verdade fosse aquela que costumo emoldurar nos momentos de solidão, iluminado por um quarto escuro, quando posso me expressar e me iludir.

Queria que estivesse aqui. Sua ternura recoloca planos sobre a mesa. Infla meu peito de coragem, desejo de criar, ânsia em cumprir. Seu sorriso me contempla esperançoso. Suas palavras me preenchem harmonia. Sem saber seus rumos, e como lhe perseguem outros quintais, fechei-me aqui e declararei para sempre o hoje, um dia epagômeno.

EU NÃO SOU EU

Certo dia, ao acordar, descobriu-se outra pessoa.

Primeiramente, estranhou o aroma que impregnava o ar. Era um cheiro de novo, esmero, limpeza. Percebeu um odor suave, talvez doce, amadeirado. Perfume, certamente. De quem seria? Dele, não mesmo. Tinha alergia a essas frescuras. O lençol cheirava a lavanda… mas ele não havia vomitado meio litro de álcool e porçõezinhas, antes de cair desacordado? Lembrava-se muito bem. Uma roda de amigos, noite passada. Barzinho da esquina. Só ele: 10 latinhas de cerveja, duas caipirinhas, um vermute, porção de salame, de presunto, de camarão e de calabresa. Depois só alguns flashes. Dois tombos na rua. Uma queda na escada ao subir para o apartamento. A testa sangrando. Vomitando tudo na cama. Deitando em cima e… nada mais.

Olhou ao redor. Estava em casa. Os mesmos móveis. Tudo no seu devido lugar. Mas não exatamente tudo. As latas de cerveja que decoravam o chão haviam desaparecido. Nenhuma bituca de cigarro sobre a cama. Nenhum escarro esverdeado ressequido sobre a parede, agora branca, mas outrora, quase toda esverdeada. A mesa estava limpa. As cortinas estavam limpas. Ele estava limpo.

Deu um salto da cama e ficou de pé. Ereto, como um ginasta. Habilidade? Equilíbrio? Estranho. Nessas horas, costumava tropeçar, catar cavaco pelo quarto apertado, bater a cabeça na porta e xingar todas as almas. Aquela disposição, aquela limpeza, começou a lhe preocupar pra burro.

Correu para o banheiro – sem tropeçar, sem cair. Que estranho! Ao olhar no espelho (que não estava coberto de manchas brancas) viu outro rosto. Não era ele. Na verdade, até era ele. Mas não era. Este tinha cabelos. Mas não havia raspado a cabeça na semana anterior por causa das pulgas e piolhos? Havia raspado as sobrancelhas também (achava bonito ser grotesco). Mas agora elas estavam ali, caramelo escuro, cuidadosamente assentadas acima dos olhos estupefatos que não acreditavam no que viam. Não havia o familiar olhar lânguido, a boca entreaberta, nem restos de salame e queijo pútrido grudados em seu queixo, após a última regurgitada antes de desmaiar. Enfim, o inferno, era uma outra pessoa.

Sonho, sonho, pensou. Deve ser um maldito sonho. Mas não era. As sensações estavam ali, em todos os detalhes. Cerrou os olhos. Socou a parede. Gritou de dor. Abriu os malditos olhos. E lá ainda estava a figura confiante no espelho do banheiro.

Eu Não Sou Eu

Melhor tomar algo pra dar partida no cérebro. 200 ml de vodka resolveriam, pensou, modesto. Mas não encontrou o divino elixir. Nem na mesa, nem na geladeira, nem em qualquer outro canto. Muito menos cerveja, vinho, aguardente, ou qualquer porcaria que tivesse estampado no rótulo seu grau alcoólico. Ao contrário, só encontrou uma nojeira de dar nó no estômago: sucos e sanduíches naturais. Pegou uma destas garrafas plásticas, na geladeira. No rótulo, lia-se: melancia com uva e hortelã. Se estivesse pensando em parar na UTI, dois goles bastariam.

Correu pra gaveta. Um cigarro, por favor. Precisava de um cigarro. Mas só havia chicletes sem açúcar e barras de cereal. Sobre o armário, flocos de aveia e soja. Sobre a geladeira, uma bandeja com banana e laranja. Começou a se sentir tonto. Ia desmaiar. Normal. Costumava desmaiar de bêbado todos os dias. Chegou a girar os olhos simulando um desmaio, bambeou propositadamente as pernas, mas… não desmaiou. Bem que tentou, é verdade. Mas não conseguiu. Pelo contrário, nunca se sentira tão bem. Tão disposto e jovial. E isso estava lhe deixando muito mal.

Voltou para o espelho, e o sr. Saúde ainda estava lá, cada vez mais corado. No desespero, começou a chorar. A bem dizer, apenas tentou. Não saíram lágrimas. Fez todo o esboço, a cena típica: sentou-se na cama, curvou-se sobre as mãos espalmadas, deu um retundo: aaaaaaaaaaaahhh, mas não chorou. E como haveria de chorar? Não havia deficiências emocionais nele. Sentia-se forte, confiante, corajoso. E esta porcaria estava deixando ele tremendo de medo.

Tentou lutar contra aquilo. Acordar, voltar ao seu mundo. Sentir o cheiro azedo no ar, a cama úmida, a cueca pesada e a certeza de que precisava usar fraldas. Este era o seu mundo. Seu lar. Um lugar onde era rei.

E de repente, o pior aconteceu.

Foi invadido por um desejo gigantesco. Uma força propulsora rompendo seu interior. Uma ânsia guiando seu corpo numa só direção. Ele gritava “não, por favor, não”, mas o desejo era de uma intensidade trovejante, dominando-lhe os músculos, escravizando seus ossos. Ainda que lutasse, não resistiu.

O corpo foi sendo arrastado pelo desejo em direção a cozinha. Abriu a geladeira, contemplou a garrafa e salivou de desejo.

– Por Deus, nããããããããããããooooo!! – gritou, antes de entornar a garrafa, e tomar o suco de melancia com uva e hortelã num gole só.

ADEUS, OLIMPO

Ela puxou a pele da gordura malar, termo nada obtuso para a maçã do rosto, exibindo uma caricatura não tão distante da figura difusa que se tornara. Esticada, retesada, parecia-lhe menos agressiva. Manteve a bochecha esticada. Ainda se lembrava? Onde fora parar sua juventude, seu vigor? Uma busca nos esgotos fétidos revelaria algo? Deixou a bochecha, e foi até os olhos. Camadas de gordura e células mortas contornavam seus encantadores olhos azuis. Na verdade, contornavam, tempos atrás. Hoje, apenas camuflavam qualquer beleza dantesca que outrora ali residira. Resolveu aplicar o mesmo truque da bochecha nos olhos. Esticou a pele. Flacidez sem fim. Esticou. Por uma fração, percebeu uma mudança. As rugas pareciam se ocultar, mas a mancha escura se tornava mais coesa. As mãos tentavam, ora aqui, ora ali, descompassar inutilmente aquilo que o tempo impiedosamente lhe infligira como uma carga impossível de se carregar. Achou-se incapaz. O bisturi fizera algumas mudanças, é verdade. Mas não lhe devolvera aquilo que sua ambição tanto desejara: sua juventude, seu alvor. Apenas substituíra a velha e velha velhice por um rosto falso, inexpressivo, máscara putrescível. Seus seios haviam perdido a batalha para a gravidade há muito e muito tempo. Os quadris se alargavam numa velocidade impressionante, quase escapando ao acompanhamento policial de seus olhos investigativos.

Adeus Olimpo

Fora uma jovem normal, é verdade. Então, onde errara? A conclusão não era difícil. Quando os planos se tornam mais intensos que a realidade, a porcaria está feita. Em certa manhã, no ápice de sua juventude (e de sua imbecilidade), achou que tudo podia ser resumido a fórmulas matemáticas. Colocou tudo no papel. Prós e contras. Seria atriz, escritora, turista de 10 países, a página principal do Jornal da Felicidade e Utopia Inacessível Para Reles Mortais. Nessas horas, a pessoa se esquece que está apodrecendo aos poucos. É invadida pela chama falsa dos deuses do Olimpo. Teores de imortalidade. Odores de invencibilidade. Mal percebe o corpo recurvado, dia após dia. Mal percebe o hálito apodrecendo. A visão começa a lhe trair a percepção. Os passos já não tropeçam em obstáculos. Mas em si mesmos. Na fase infantil do registro de sonhos na caderneta, achara que seria a esposa perfeita, mãe aos 30, filha exemplar. Quando o tema das conversas fosse os bem-sucedidos, seria sempre apontada.

Mas quando começou a se esquecer de coisas pequenas (havia sido uma garota de memória invejável) percebeu que algo estava errado. O tempo parecia errado, não ela. Ele havia disparado, e a deixado para trás. Tempo traiçoeiro. Ela correu atrás. Tentou alcançá-lo. Correu. Correu. E se cansou. Não havia mais tempo. Ele se esgotara. Ela também. O vigor já não existia. Os planos se provaram falhos e infantis. Cansou-se. A corrida estava acabando, e ela era a última colocada. Xingou o tempo.

Pensou melhor, e xingou a si mesma.

Sentou-se, gemendo e praguejando. Lombalgia. Dores nas regiões lombares ou lombossacrais. Ela costumava chamar de “maldita dor dos infernos”. Hoje era difícil definir o que doía. Os dentes doíam, o pulmão doía, os pés doíam. Toda sua alma, enfim. O que não doía, latejava.

Do que se arrependia? De tudo. Principalmente, por ter sonhado o impossível. Ah, o impossível. O Olimpo. A altivez. Besteira! Hoje, sozinha. O marido morrera anos atrás. Mas as fragilidades estavam bem vivas. Sem filhos, restara-lhe a casa. A casa. Ela. E seus fantasmas.

Pensou em escrever sua história. Um registro para a posteridade. Não que alguém fosse se interessar. Mas seria seu desabafo. Pensou num título. Ocorreu-lhe um. Botou no papel: “Vida, Lutas e Derrotas de uma Guerreira”.

Se não fosse uma partícula de orgulho sobrevivente, teria escrito: “Lamentável Saco de Refugo”.

Homem Cor de Lixo

Já chega desse lixo, disse, ensandecido. Estava farto. Cansado de si mesmo. No espelho, os olhos não transmitiam nada. Nem o rosto. Nem porcaria nenhuma. Apenas uma névoa. Ele era a fétida névoa. Preferiu então, resignado, deixar que as palavras lânguidas sussurradas entre espumas de saliva o resumissem. Era o caos desnudo. Opróbrio enxuto. Tênue e vaga lembrança do que poderia ter sido. E poderia ter sido. E teria sido, se não tivesse mergulhado fundo naquele erro que um dia chamou de vida.

Homem cor de lixo

Outrora, havia esposa. E filhos. E casa. E um emprego. Outrora havia sangue em suas veias. Era muito. Mais tarde, diria, era tudo. Um tudo nada. Ao menos, aos olhos de vagante de torpe ótica. Mas naquela tarde de agosto, às 14h23min13seg, a agulha rompeu o tecido da sua pele. Rasgou a camada córnea. Atravessou cada célula da epiderme. Vazou derme e hipoderme. E quando chegou lá, bem lá, onde outrora havia sangue – lá nunca deveria ter estado –, depositou toda aquela porcaria que mudaria sua vida.

Um choque. A tensão sôfrega. As cores listadas como um arco-íris bucólico. Brutalidade. Insensatez. Os passos vacilantes. As palavras mal elaboradas. Os olhos distantes. Convenceram-no ser liberdade. Agora, um escravo. Um lixo ambulante de vagas lembranças.

A culpa. De quem era a culpa? A quem cabia, o descabimento? Apontou dois ou três. Acusou outro. Ameaçou tantos mais. No fim, odiou apenas a si mesmo. Não o ódio mortal. Ou a desesperança que faz um cara saltar de um prédio qualquer. Apenas o ódio de quem sabe onde está, tenta sair, mesmo sabendo que nunca irá conseguir. Hedionda sina. Sonda assassina.

No dia em que vomitou sobre o prato de feijão e arroz, no jantar, foi abandonado. Esposa e filhos, nunca mais. O emprego já lhe havia escapado rápido pelas mãos. De agora em diante, era ele e o lixo. Bem assim, ele e o lixo. Mas foi difícil definir quem era quem.

Hoje era um homem de meia idade, aparentando 60 anos. A bem dizer, aparentava ser um defunto. Os cabelos brancos e ralos na testa rasgada pelas marcas da depressão. Os olhos perdidos navegando sobre um corpo esquelético, uma massa branca e ressequida que não desenvolveu. Da boca, corriam os filetes. As espumas se mantinham solidificadas em cada canto. A saliva lhe desenhava o queixo. As palavras não ouvidas. Lânguido, tentou dizer algo mais. Mas preferiu baixar a cabeça, como fizera nos últimos cinco anos, e derreteu-se na amargura de um tombar de corpo, que nem ruído fez. Leve como o vento. Leve. Levado embora pela brisa.

O corpo nu estendido no banheiro só viria a ser descoberto pelos vizinhos depois de nove dias.


Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Os dias tensos perdem força diante do caos real do hoje. Não é nítido recuperar o passado em palavras, e contar a um estranho. A tendência é se esconder, desaparecer entre a chuva e o medo. O psicólogo tem cara de psicopata. Me lembra Dr. Lecter. Será que ele vai degustar parte do meu rosto durante uma de nossas conversas? Hoje, a terceira consulta.

– Você precisa confiar em mim, Messina. – A voz dele é a voz do soldado Pyle, em Full Metal Jacket, na cena do banheiro. Fico feliz por ele não ter dito: “Hi, Joker”.

Melhor o senhor não confiar em mim, doutor. Penso. Não digo. Prefiro não ameaçar esse homem, ou ele pode pular em cima de mim, arrancar meus olhos, mastigar minha esclera, sugar o canal hialóideo, e se lambuzar com minha fóvea central. Existem tensões que podem ser evitadas. E outras que nem deveriam ser cogitadas.

As paredes do consultório são verdes. Um verde musgo. Verde mórbido. Lembram hospital. Supuram pensamentos inquietantes. Daqueles que deixam a gente se remexendo feito um cachorro sarnento na cadeira.

– Me conte sobre seu dia, Messina.

Chego tomar um susto. Ele não pede. Ameaça. Só faltou colocar uma arma na minha cabeça e salivar.

– Meu amigo imaginário não deu as caras hoje.

– Que bom!

– Em outras palavras, não conversei com ninguém.

– E a garota que você disse que ia convidar pra sair? Vai dizer que amarelou?

– Se eu continuar amarelando desse jeito, doutor, vou acabar virando um Simpons. – Dou uma risada alta e ele continua sério. Então, me recomponho e continuo: – Descobri que ela tem namorado.

– Mesmo?

– Fiquei mal pra burro.

– O que não é novidade. – Às vezes, acho que o safado está de sacanagem com minha cara. – E o que você fez?

– Eu liguei pra um amigo. Pra conversar.

– E…?

– Deu telefone inexistente. Fazia anos que não nos falávamos.

– Ah.

– Aí, só me restava procurar meu irmão.

– Mas você não disse que não tem irmãos?

– Será que foi por isso que ele não me atendeu? – Dou uma gargalhada, rindo da minha piada.

Ele não. Ao contrário, fica me olhando com cara de quem está pensando: “Você é um caso perdido, seu louco varrido”. Se ficasse por isso, estava bom. Afinal, em seguida, ele soltou um grunhido, mostrou as unhas e voou pra cima de mim.

Terapia Com Doutor Pyle Lecter

Meu psicólogo em dois momentos relax

QUEM DISSE QUE QUERO SER POP?

O cara de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante não sou eu. Não sei porque, mas quando ouço Cara Estranho, sinto que o sacana do Camelo está falando de mim. Cabe-me parte dos lucros? Direito de imagem, ainda que imagem escrita? Uma torpe impressão, um dia finito, algo assim.

Nessa onda, vieram os luserianos – o movimento. Termo cunhado pelo contumaz poeta-falido Paulo Lucká. Nascido nos becos dos anos 90, duas figuras curvilíneas e berrantes que mais pareciam a dupla dinâmica Quasimodo e Nosferatus. Luserianos. Losers. Nem tanto quanto parecia. Tínhamos o mundo diante dos nossos olhos. E nos amparávamos na literatura. A revolução.

Quem disse que quero ser pop?

– Vamos deixar John Fante no chão.

– Beatnik será brincadeira de criança.

– Nosso nome ainda figurará em livros de história.

– Não seria, literatura?

– Livros de história tem muito mais impacto.

– Han…

Precisávamos de outros como nós. Parecia fácil. Se for espancado por algum valentão no colégio, garanto que é poeta ou compositor. Abaixaram a calça de um na biblioteca: bem-vindo aos luserianos. Jogaram outro num cesto de lixo: você escreve, garoto? Um tapa na nuca do vesguinho: que tal vomitar toda sua revolta em textos reflexivos?

Cada qual com suas armas. Procurávamos as nossas. Éramos adolescentes. Um fruto ainda por crescer. Talvez se tivéssemos passado mais tempo no Sol, as pessoas seriam capazes de ouvir nossas risadas. Ou talvez, não. Aposto que você não se importa.

Assim nasceram Os Luserianos. Chegamos a 42. Quarenta e duas estranhas figuras que mal sabiam em que direção olhar. Queríamos ser heróis, mas cada um de nós se assemelhava mais aos vilões das histórias em quadrinho. Não construímos nada, efetivamente. Mas construímos o tudo também. Paradoxo insistente. Caos inexistente. Éramos como a Sociedade dos Poetas Mortos. Totalmente mortos, quase poetas, e longe da sociedade.  Nossos escritos compartilhados. Poetas e fãs, amalgamados. “Vou colar sua poesia na porta do meu quarto”. “Cara, me acabo de rir com seus textos humorísticos“. “Vejam a peça de teatro que escrevi”. Éramos jovens. E nos sentíamos vivos.

Na verdade, nunca desejamos estar em livros de história ou literatura. Nem queríamos ser fonte de inspiração para o Los Hermanos. Queríamos apenas a voz. Um grito ecoando pelos flancos e estourando seus tímpanos.

Eu sou uma alma, mas não exatamente um soldado. Não sou o cara que vai chegar e dominar uma conversa. Não sou o cara que vai te tirar pra dançar. Muito menos me esparramar sobre uma cadeira de bar, me espreguiçar e esbravejar para todos ouvirem: “ô vontade cagar”. Deixo isso para os caras de olhar renitente, de fala envolvente, de porte confiante.

Me reservo a posição de ser eu. Abstenho-me de transmutações. Não me permito mudar. Nem me permito querer mudar.

Afinal, as pessoas não são merecedoras de tanto.

FERIDAS ANTIGAS

Na longa espera, esperava o retorno de quem há muito partira. Os olhos dela eram um espelho das lágrimas derramadas, noites mal dormidas. O silêncio lhe tirara o sol, lhe embriagara o sangue. Sangue que não mais corria. Rastejava-se, lânguido, por entre veias ressequidas, sem muita ideia de para onde ir. A Terra em constante movimento, mas ela estática. O amor lhe traíra. Uma faca em seu peito num momento de distração. Seus pés fincados no chão, as solas grossas, amalgamadas ao concreto frio.

Num certo dia, parou de olhar ao redor. Concluiu que o passado foi feito para ficar lá atrás. Um instante destruído não poderia ser eternizado. Não poderia lhe corar as faces. Nem tombar sua consciência.

Feridas AntigasEm anos, pela primeira vez, o futuro lhe sorriu. A sombra que se lhe fizera renegar, agora, derretia-se ante a intensidade que ela mesma carregava em estado natimorto. Soergueu-se no impacto do desejo, e descobriu-se apaixonada por si. Quando segundos ficaram para trás, seus pés caminhavam apressados rumo ao horizonte que lhe convidava.

No caminho, encontrou com ele – ELE, a razão de todo seu sofrimento. Ele sorriu-lhe feridas antigas, pediu-lhe perdões impossíveis, jurou-lhe promessas que não cumpriria. Por um instante, ela parou. Recorreu ao que antes ignorara: uma análise criteriosa da situação. Após pensar e meditar, sorriu-lhe acidez e despediu-se dele com um retundo:

– Vá pastar!


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