Marcos era da opinião de que mudanças de casa eram como esvaziar a própria vida em caixas e embalar lembranças em fita adesiva. Havia algo de despedida naquelas paredes vazias e no eco ocasional de um pé de mesa raspando o chão. Ele parecia se desfazer de si mesmo, trocando de pele. Onde ele estava? Para onde iria, afinal?
Durante a mudança, ele descobriu inúmeras coisas esquecidas, objetos cuja presença há muito havia desaparecido de sua memória. Tal como uma colher de pau dentro de uma caixa junto com um CD do U2. Por que raios eles estavam juntos?
Enquanto empacotava outros objetos, Marcos foi invadido por uma singela e bonita emoção ao encontrar um diário empoeirado com folhas amareladas pelo tempo. A capa e as páginas exibiam sinais de desgaste que testemunhavam o passar dos anos. O fecho, que outrora guardava com zelo seus segredos, estava enferrujado, como uma barreira enfraquecida pelo peso das primaveras.
Ao abri-lo, Marcos foi transportado no tempo. Cada página amarelada era uma cápsula do passado, um vislumbre de sua própria mente em um momento em que ele era mais jovem, mais intenso e muito menos sábio.
As páginas revelavam segredos e confissões, sonhos e medos, amores e desamores. Ele riu ao ler sobre suas paixões adolescentes, foi invadido pela nostalgia ao encontrar os planos grandiosos que havia feito para a vida aos 30 anos, e até se sentiu envergonhado ao dar-se conta de que não havia alcançado a maioria. Ser um rock star e viajar o mundo? Hoje ele lutava para pagar o aluguel e suas viagens consistiam em 500 quilômetros anuais para ir visitar os pais.
O diário era um tesouro esquecido, uma janela para a mente de um jovem Marcos, uma época em que ele era cheio de sonhos e devaneios.
Ao finalizar a leitura, ele guardou o diário em uma caixa e prosseguiu com os ajustes para a mudança que ainda teria de fazer.
No entanto, Marcos continuou atormentado com sua descoberta e passou todo o dia se perguntando:
“O que afinal aquela colher de pau estava fazendo com o CD do U2?”
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Muito interessante essa abordagem das características dos personagens das nossas histórias. Na verdade, o leitor tende a se interessar mais pelos imperfeitos que se assemelham à sua personalidade. No desenvolvimento da trama, os perfis dos personagens desfilam sob o interesse/desinteresse do leitor de forma desafiadora.
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Muito boa.rsrs
Ótima para refletirmos sobre nossos sonhos e como lidar com a não realização deles.