Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Amor à la Albert Einstein

Diante de um amor não-correspondido, muitas pessoas prefeririam desaparecer. Mas se esquecem de uma solução muito mais simples, rápida e eficiente oferecida por Albert Einstein

Ato I

É mais do que embalar alguns livros biográficos, louças inúteis e roupas descoradas. Trata-se de embalar quase uma vida inteira. Sobrevivendo nesta casa vazia, acumulando coisas que jamais me fariam falta, é o momento de dizer adeus a um passado que nunca vivi, e a um presente que nunca esteve aqui.

Quando soube que você jamais me amaria, decidi que a vida precisava ser reformulada, caiada com um branco vivaz, e não desperdiçada no esgoto da chamada esperança.

Por isso, decidi partir. E ver o sol partir no distante horizonte, a partir de outras coordenadas. Um lugar onde o céu avermelhado não pudesse refletir a intensidade dos teus lábios moldando o som de tua voz que insiste em residir em minha pele.

E é por isso que guardo minhas coisas apressadamente, como se o inimigo pudesse aparecer a qualquer momento, e me levar para a guilhotina mais próxima – e meus últimos relances fossem um céu azul, horizonte, chão empoeirado, horizonte oposto, céu azul novamente.

Teria continuado na tediosa tarefa de guardar o dispensável, se não tivesse percebido um estranho porta-retrato na escrivaninha. Nunca tive porta-retratos. A fotografia nele fez inicialmente aflorar a estranheza, e posteriormente incredulidade e espanto. Estranheza por me deparar com a fotografia de um casal de idosos que me parecia muitíssimo familiar.

E a incredulidade e espanto ao constatar que o casal de idosos eram você e eu.

Ato XXVII

Tenho 38 anos. Mas ali, na fotografia devo estar perto dos 65. Há uma incrível careca disforme sobre minha cabeça. As sobrancelhas, agora brancas, parecem desenhar uma sobriedade digna de alguém respeitado. Pareço ter mais pele do que o normal, pele esta que, com pouca firmeza, insiste em se derramar sobre um corpo cansado.

Mas, olhe para isso, há um sorriso em meu rosto que jamais qualquer espelho foi capaz de me devolver. Entre carecas disformes, peles escuras e flácidas, pelos brancos elevados à máxima potência, há um sorriso incandescente coroado por olhos meus, irradiando um brilho que a maioria das pessoas chamaria de felicidade.

E imediatamente percebo a razão do inédito semblante: você está ao meu lado. Mais velha, assim como eu. Passando dos 50 anos, arrisco. Mas não menos encantadora. Ainda possui o mesmo sorriso puro e discreto, os mesmos olhos que já fizeram meu coração acelerar e por vezes até parar, e os mesmos cabelos negros ondulados onde sempre mergulhei meus pensamentos.

Volto meus olhos para a escrivaninha. Há outros porta-retratos. Sempre de nós dois. Eu e você. Aparentemente, casados. Aparentemente, felizes.

Mas definitivamente, nós.

Com o porta-retratos em mãos, mantenho-me ali. Estático, confuso, incrédulo. De alguma forma, devo ter rompido a curvatura do tempo. Seria uma ruptura no tempo-espaço e um vislumbre do futuro? Ou apenas a criação de uma mente tumultuada por sentimentos?

Lá fora começa a chover. Ouço a chuva caindo sobre as folhas no quintal, e tenho a nítida impressão de que elas estão aplaudindo nosso sincero amor que ainda está por nascer.

1 Comment

  1. rita

    at

    Excelente artigo! Já visitei o seu blog outras vezes, porém nunca
    tinha escrito um comentário. Pus seu blog
    nos meus favoritos para que eu não perca nenhuma atualização.
    Grande abraço!

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