Surgiu na pequena cidade como uma tempestade de verão: sua presença parecia rugir e não passou incólume nem diante dos cães sarnentos que apinhavam as ruas empoeiradas.
A cidade era tão lúgubre quanto o próprio nome: Soturnina. E seus cidadãos pareciam nascer já à espera da morte. Senhoras mumificadas debruçadas em janelas, ansiosas por uma novidade. Mórbidos anciãos estatuários jogando damas na praça. Crianças remelentas se desfazendo em perebas e algazarras, disputando espaço aos chutes com cães e moscas. Fim de um dia agitado!
Ao cair da noite, todos se recolhiam. Costumavam fitar as paredes, esperando o sono chegar. Por vezes, arriscavam algumas frases mal construídas, quase sem sentido, e esperavam que o outro ser que residia sob o mesmo teto pudesse dar prosseguimento a uma conversa animada. Mas muitas vezes, as palavras que vinham em resposta não passavam de um:
– Pois é! – E novamente, o silêncio avassalador.
Resumidamente, não era apenas uma cidade em frangalhos.
Era Soturnina.
-.-
Até o dia em que aquele ilustre forasteiro chegou à cidade, acompanhado por uma frota de máquinas e pessoas até então desconhecidas aos lúgubres cidadãos.
O homem parecia saído de alguma epopeia, tamanho seu encanto e vistosidade. Chamava atenção à distância. Roupas e chapéu de couro, botas ornamentadas Tony Lama, e um vistoso sorriso que refletia a pálida luz do sol que ali repousava. Era acompanhado por um séquito de imensos guarda-costas que faziam a terra tremer, passo ante passo. O que parecia inútil quando comparado com uma frota de dez caminhões Caterpillar 797F e seus mais de 6 metros de altura.
Tumulto geral! Duas senhoras mumificadas gritando a novidade ao mesmo tempo, uma sem ouvir a outra. Velhos sendo atropelados por crianças velozes com suas ágeis canelas pútridas.
O prefeito, com os passos miúdos, veio até o visitante. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, ouviu as poderosas palavras do visitante, faladas por entre dentes magistrais:
– Seu serviço como líder terminou. Eu assumo a partir daqui.
– Assume? Como assim, assume? – resmungou, trêmulo diante da imponente figura dantesca.
– Eu comprei esta cidade, meu caro. – Ele estendeu um documento e o sacudiu diante do rosto do prefeito. – A posse de toda a cidade está registrada em meu nome.
Atônito diante do surrealismo da situação, o prefeito tentou argumentar alguma coisa, mas faltavam-lhe postura e argumentos. E há de se convir: quando um homem não tem postura ou argumento, só lhe resta aquiescer.
– Esta cidade agora me pertence, incluindo propriedades, animais e pessoas. E como dono de tudo minha primeira ordem é: reúna os cidadãos na praça, em uma hora.
– Mas…
Um dos guarda-costas deu um passo ameaçador na direção do prefeito, que se encolheu ainda mais, e acatou prontamente a ordem.
-.-
Uma hora depois, a praça estava tomada. Velhos usando a língua para brincar com as dentaduras soltas e dançantes em suas bocas, crianças esquálidas equilibrando-se sobre dois cambitos perebentos, e cães pulguentos se esquivando de chutes.
Até que o forasteiro subiu ao coreto e todos fizeram silêncio. Suas palavras soaram poderosas, ecoando pelo ar parado e poeirento.
– Estimados cidadãos. Com grande honra e satisfação venho comunicar-lhes que a partir de hoje, seus dias de miséria chegaram ao fim. Com a fortuna que me é atribuída, adquiri cada metro quadrado desta cidade. E com qual objetivo? Transformar a miséria em prosperidade. O que acham de terem saúde pública digna de primeiro mundo? – Burburinhos na multidão. – Educação que causará inveja às maiores instituições de ensino do planeta? – Uma agitação excitada entre todos. – O maior parque aquático do planeta? – Aplausos e risadas combinadas. – E o menor salário da cidade não ficará abaixo de 5 salários-mínimos? – Eram urros e gargalhadas, alguns próximos de desmaiar, tamanha satisfação. – Pois isso é o que vocês terão a partir de hoje. Sejam bem-vindos à prosperidade, amado povo de Infaustonina.
Calou-se um silêncio mórbido na multidão.
O prefeito aproximou-se do “semideus” e sussurrou:
– Meu senhor, a cidade de Infaustonina fica uns 100 km pro sul.
O homem pigarreou. Como? Cem quilômetros? Sul?
Pegou novamente o documento. O prefeito se aproximou e agora conseguiu ver o documento, finalmente.
Infaustonina, estava escrito, sem sombra de dúvida.
O visitante perguntou meio encabulado:
– Você tem certeza que não é aqui?
– Sim, meu senhor. – A resposta óbvia. – Nóis é Saturnina.
Evidentemente desconcertado, o homem suspirou. Fez um gesto para seus guarda-costas. Lentamente, e em absoluto silêncio, desceu o coreto. Entrou em sua limousine e seguido pelos monstruosos caminhões, todos eles desapareceram pelo mesmo caminho de onde vieram.
A multidão ainda levou duas horas para se dissipar.
Mas estavam tão absortas nas conversas excitadas sobre o que acabara de acontecer que nem sequer um cachorro foi chutado.
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pobres cachorros, foram chutados!