Ela chegou em casa às oito da noite. Deparou-se com o marido esparramado no sofá da sala, assistindo TV. Tão desleixado que parecia ter sido atropelado por uma carreta.
Braços e pernas arreganhados como se fosse um paraquedista em queda livre. Havia inexpressividade no seu rosto enquanto os canais eram trocados, aleatoriamente. A boca aberta abrigava baba ressequida no canto dos lábios. Os olhos se mexiam e remexiam, vertiginosos, tentando acompanhar a série de imagens que iam e vinham, à medida que percorria dezenas de canais da TV.
O que pensar ao encontrar o “homem de sua vida” sob tal ótica, tendo como únicos movimentos corporais o olhar lânguido, o polegar que acionava os botões no controle remoto e a barriga que subia e descia num ritmo frenético, como se respirar lhe fosse um exercício extenuante? Ela deveria ter dado ouvidos à mãe, concluiu. E não foi por falta de aviso.
Foi para a cozinha, exausta após o longo dia de trabalho e se deparou com a louça emporcalhada sobre a pia. O marido nem para se mover. Era de admirar como tinha forças para trocar de canal. Quando casara, ele era apenas preguiçoso. Com o passar das primaveras, agregou outras desagradáveis características. O que ela deveria esperar em seguida? Será que deveria esperar por um milagre, uma súbita mudança de atitude?
Sentindo-se exausta e deprimida, chegou à única conclusão salubre que poderia ter, naquele momento.
De volta a sala, aproximou-se do ser distraído, e que parecia estar a poucos instantes de um infarto fulminante. Então, anunciou, resoluta:
– Estou indo embora. – Havia lágrimas nos olhos dela. A voz quase indistinta, engrolada pela decepção que se tornara seu casamento.
Após alguns segundos que pareceram eras, ele a encarou. Apenas o movimento dos olhos. Cabeça e pescoço, inertes.
Naquele olhar preguiçoso, ela percebeu o que parecia ser um pedido de clemência. Como se a vida lhe passasse diante dos olhos, e ele percebesse como fora tolo em desprezar aquela que um dia chamara de “mulher mais espetacular que já conhecera”. Naquele simples olhar, ela percebeu tudo isso. Ele se arrependera. Ele pediria pra ela ficar. Talvez houvesse uma chance para os dois. Talvez ele mudasse. Talvez o milagre se fizesse presente em suas vidas, e eles tivessem a oportunidade de serem felizes novamente.
Até que ele abriu a boca e disse:
– Ah, então quando voltar, passe no mercado e me traga mais uma cerveja.
Definitivamente, acreditar em milagres pode parecer belo e poético.
Mas, nesse caso, já era pedir demais.
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Deus me livre..! Nelson Rodrigues continuaria isso dizendo que a mulher voltou pra casa com as cervejas, ele bebeu em seguida eles discutiram, a mulher apanhou… Depois fizeram as pazes… A conclusão do assunto é que ela é “normal”, ‘nem todas as mulheres gostam de apanhar, somente as normais; as neuróticas reagem’, essa máxima rodriguiana não consigo achar machista!
Na tua versão não dá pra saber se ela é uma “neurótica” ou uma “normal”… Com as informações que temos, classifequemos-na como uma santa, vai!