Primeira segundona do ano. 16h38. E já estou no consultório mórbido do meu psiquiatra psicótico. Uma maneira boa de se começar o ano: reclamar um monte e ver um cidadão com cara de doido ranger os dentes e me chamar de otário. E ainda pago ele. Coisa de otário.

No meu smartphone, vou digitando, enquanto espero minha vez. Um matadouro, eu diria. É uma tensão. Minha vez. Minha hora. Minha sina. Às vezes torço pra minha vez não chegar nunca. Às vezes, torço pra acordar em minha cama. E às vezes torço para parar de torcer por coisas que nunca se concretizarão.

A secretária dele tem cara de homem. Ou talvez seja realmente um homem vestido de mulher e que atende pelo nome de Maria Clara. Tanto faz. É feia pra burro. Me lembra o Sloth, dos Goonies. Acho que vou dar um chocolate pra ela. Isso foi uma piada. Se não entendeu, vá até uma locadora e pegue o filme. Odeio explicar piadas. Sloth, digo, Maria Clara está jogando Paciência. Acho que vai perder, pelos palavrões que está soltando. Ela xinga qualquer coisa – e não está falando comigo – e dá um tapa no monitor. Acho que ela deveria marcar uma hora com o Dr. Pyle. Uma hora, não. Talvez um mês inteiro, por garantia.

Dois minutos depois, o doutor liga na recepção e avisa que posso entrar. Droga!, penso. Ela nem me olha. Só faz um gesto com uma das mãos e resmunga:

– Entra lá. – Meio assim, sargento Hartmann. Não entendeu? Vai pra locadora, vai.

Então eu entro. Meio arrastado. Como se tivesse deixado pés e pernas na recepção. Ou será que deixei mesmo? Me sinto mais baixo, inclusive.

Lá dentro, no castelo mal-assombrado, o doutor me olha com aquele olhar amigável de sempre, de quem está com vontade comer carne humana. E já solta:

– Ora, ora. O perdedor voltou. Achei que ia estarei bêbado na sarjeta.

Sorrisinho macabro. Aproveito o smartphone na mão e tiro uma foto dele. Olha o naipe da figura:

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Olha o passarinho, Doutor!

E dou sequência a conversa:

– Ah, este tipo de coisa, se embebedar e tals, a gente precisa de companhia. Vim te convidar – brinco.

Ele estranha. Não sou de brincar. Fica sério. Acho que vai pegar o machado e decepar minha perna esquerda – se é que não a deixei na recepção. Mas sossega e só diz:

– Que bicho te mordeu, moleque? – Gostei do “moleque”. Depois dos 30 qualquer abobado fica ansioso por isso.

– Primeira segundona do ano, doutor. É bom começar o ano animado.

– Bem típico de loser, mesmo. Marcar os dias no calendário para estar animado. E que dia você marcou pra cair na real?

– Eu pensei…

– Ser simiesco, quando pensares irás dar um passo gigantesco em seu descobrimento interior. Por enquanto, você só delira.

– Bem, então eu delirei que…

Ele ergue a mão me fazendo calar. Começa a tremer. Os olhos esbugalhados. Respira fundo, tentando recuperar o controle. Fala pausadamente:

– Entre estas quatro paredes, palúrdio irreparável, não irás delirar. Ou arranco teu hipotálamo na unha. – Eu não duvido nada. – Por que você se deixa contaminar por esse lenga-lenga que esse bando de viciados em cachaça e inutilidades propagam?

– É só uma questão de organização. Começa o ano, faço uma lista, coloco as…

– Lista, lista, lista. Isso é coisa de maníaco com transtorno de ansiedade e déficit de atenção. Você precisa parar com essa overdose de filosofia pancreática e começar a agir. Que dia é hoje? É só um dia imbecil e patético como outro qualquer. Principalmente, por você estar aqui me infernizando, com suas frases e pensamentos. Então, trate de pegar esse pernas brancas, secas e peludas e sumir da minha frente.

A esta altura, ele já tinha babado três litros e meio de saliva. O outro meio litro ficou em forma de espuma nos cantos da boca. Então, pego minhas pernas brancas, secas e peludas e trato de sair dali. Mas, ainda estou na porta, quando ele grita:

– Ei, amalucado. – Me volto para ele. – O convite para a bebedeira, ainda está de pé?