Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Homem Cor de Lixo

Já chega desse lixo, disse, ensandecido. Estava farto. Cansado de si mesmo. No espelho, os olhos não transmitiam nada. Nem o rosto. Nem porcaria nenhuma. Apenas uma névoa. Ele era a fétida névoa. Preferiu então, resignado, deixar que as palavras lânguidas sussurradas entre espumas de saliva o resumissem. Era o caos desnudo. Opróbrio enxuto. Tênue e vaga lembrança do que poderia ter sido. E poderia ter sido. E teria sido, se não tivesse mergulhado fundo naquele erro que um dia chamou de vida.

Homem cor de lixo

Outrora, havia esposa. E filhos. E casa. E um emprego. Outrora havia sangue em suas veias. Era muito. Mais tarde, diria, era tudo. Um tudo nada. Ao menos, aos olhos de vagante de torpe ótica. Mas naquela tarde de agosto, às 14h23min13seg, a agulha rompeu o tecido da sua pele. Rasgou a camada córnea. Atravessou cada célula da epiderme. Vazou derme e hipoderme. E quando chegou lá, bem lá, onde outrora havia sangue – lá nunca deveria ter estado –, depositou toda aquela porcaria que mudaria sua vida.

Um choque. A tensão sôfrega. As cores listadas como um arco-íris bucólico. Brutalidade. Insensatez. Os passos vacilantes. As palavras mal elaboradas. Os olhos distantes. Convenceram-no ser liberdade. Agora, um escravo. Um lixo ambulante de vagas lembranças.

A culpa. De quem era a culpa? A quem cabia, o descabimento? Apontou dois ou três. Acusou outro. Ameaçou tantos mais. No fim, odiou apenas a si mesmo. Não o ódio mortal. Ou a desesperança que faz um cara saltar de um prédio qualquer. Apenas o ódio de quem sabe onde está, tenta sair, mesmo sabendo que nunca irá conseguir. Hedionda sina. Sonda assassina.

No dia em que vomitou sobre o prato de feijão e arroz, no jantar, foi abandonado. Esposa e filhos, nunca mais. O emprego já lhe havia escapado rápido pelas mãos. De agora em diante, era ele e o lixo. Bem assim, ele e o lixo. Mas foi difícil definir quem era quem.

Hoje era um homem de meia idade, aparentando 60 anos. A bem dizer, aparentava ser um defunto. Os cabelos brancos e ralos na testa rasgada pelas marcas da depressão. Os olhos perdidos navegando sobre um corpo esquelético, uma massa branca e ressequida que não desenvolveu. Da boca, corriam os filetes. As espumas se mantinham solidificadas em cada canto. A saliva lhe desenhava o queixo. As palavras não ouvidas. Lânguido, tentou dizer algo mais. Mas preferiu baixar a cabeça, como fizera nos últimos cinco anos, e derreteu-se na amargura de um tombar de corpo, que nem ruído fez. Leve como o vento. Leve. Levado embora pela brisa.

O corpo nu estendido no banheiro só viria a ser descoberto pelos vizinhos depois de nove dias.


5 Comments

  1. Rafael Moreira

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    Inquietante a narrativa de uma pessoa ser comparada com o lixo, amargura de um idoso, a solidão exposta como um vazio e cansaço de sua existência onde é visto como inútil, comumente desmerecido, Juliano Martinz o que posso dizer com todo respeito, nos encante mais e mais com seu trabalho querido.

  2. Arrasou muito! Estou arrepiada!

  3. Ayron

    at

    Minha nossa, que crônica maravilhosa!

  4. Amanda

    at

    Muito profunda, bem elaborada, criatividade total, pensamento geral. Gostei bastante Parabéns

  5. nossa eu achei essa cronica um maximo quero ver mais

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