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Xeque-mate

Crônica xeque-mate

A vida imita a arte. Às vezes, acontece o contrário. Mas quanto à vida imitar o tabuleiro, aí, a coisa já parece bastante descabida. Mas não para o Leonel.

Leonel, quando criança, sempre fora retraído. A timidez era uma companhia constante, sempre próxima e intensa. Sob esta realidade, os amigos foram poucos. Namoradas então, nem se fala.

Até que descobriu o xadrez. Os pais ficaram contentes. Perceberam que o filho, pela primeira vez, sentia paixão por algo. É verdade que ele continuava enfurnado no quarto, se relacionando com poucos. Mas ao menos seus olhos irradiavam uma intensidade que podia fazer com que o casal respirasse aliviado.

Leonel virava madrugadas diante do tabuleiro, ora jogando contra o computador, ora contra usuários anônimos em sites de xadrez.

Com o passar dos anos, a rotina pouco mudou. Até arrumou emprego, casou, teve dois filhos, mas nunca deixou de lado sua grande paixão.

Embora incomodadas, as pessoas mais próximas não chegavam a encarar aquilo como um grande problema. A esposa resmungava, fazia cara de desgosto, mas o xadrez nunca havia se tornado o estopim de uma grande discussão, muito menos ameaçado o casamento.

Até que o vício evoluiu, e se tornou uma obsessão.

Leonel passou a ver sua vida como um acirrado jogo de xadrez. Neste cenário distópico, todos ocupavam seu lugar em um gigantesco tabuleiro.

Ele era o rei. A esposa, evidentemente, a rainha. Seus pais receberam a alcunha e função de bispos. Os sogros, via-os como os cavalos (embora a sogra ele preferisse chamar de “aquela égua”). O casal de filhos eram as torres, enquanto tios, primos e sobrinhos passaram a ser vistos como peões.

Qualquer outra figura que tentasse se aproximar dele ou de seus entes, era visto como ameaça. Por exemplo, quando o carteiro surgia no portão, sob a aura ameaçadora de um bispo tentando lhe dar um xeque, Leonel gritava para a esposa:

– Me cobre, me cobre – e se escondia atrás da mulher que ficava roxa de vergonha.

Metódico, não gostava que os filhos saíssem sozinho. Estava sempre sugerindo companhias estratégicas para evitar a captura das suas queridas Torres. Ele mesmo se recusava a ficar sozinho. Quando esposa e filhos decidiam sair no mesmo horário, gritava:

– Não se deixa o Rei descoberto.

Quando o filho saía para o curso de inglês, Leonel perguntava:

– Por onde vai?

– Pela Guedes Medeiros, oras.

Leonel pensava, a mão posicionada sob o queixo, o semblante cerrado como um búfalo protegendo o filhote.

– Não, não. Por ali é arriscado. Não se entra na ala do adversário pela Guedes Medeiros? Faz assim… Vai pela B8.

– O que é B8?

Dia após dia, Leonel mergulhava em seu mundo paralelo, onde cada passo dos seus semelhantes era nada mais do que um movimento para outra casa do tabuleiro. E apesar dos insistentes apelos dos familiares, ele se recusava a buscar tratamento.

Certo dia, quando a filha disse que ia comprar legumes e verduras, Leonel gritou para a esposa:

– Minha rainha, vai junto com ela.

– Pra quê?

– Estão armando pra pegar nossa Torre-Dama.

– Quê?

– Como assim, pai? Quem tá armando o quê?

– O filho do quitandeiro. Ele tá armando pra te capturar. No seu último H6, ele veio com tudo pra cima de você.

Mãe e filha se entreolharam, o desgosto repousando nos semblantes derrotados.

Leonel continuou:

– O que eu falei da última vez que fomos na quitanda? Lembra?

– Eu sei lá, pai. Que o menino tocava MPB.

– Que infernos de MPB, menina? Foi um roque. Roque!!! O espertão deu um roque quando te viu chegar. Trocou de lugar com o pai dele rapidinho. Foi um movimento inteligente, admito. Jogou o Rei pra G1 e foi pra cima de você.

– Pai, assim não dá.

– E já pensou se ele te captura? Eu não ia ter para onde correr. Aí era xeque-mate. E fim de jogo. – Resoluto, olhou para a esposa e ordenou: – Está decidido, minha rainha. Vai junto e fica atrás. Quero ver aquela torre se atrever.

– Leonel, já chega. Eu vou arrumar um tratamento para você. Ou você se trata ou vou embora dessa casa.

– Não se deixa um Rei descoberto – resmungou.

Mas não é que o velho Leonel estava certo?

Uma semana depois, a filha chegou em casa para apresentar o novo namorado: o filho do quitandeiro.

Leonel quase infartou. Queria correr para a rua, mas só podia movimentar-se uma casa por vez. Começou a gritar para a esposa:

– Me cobre, me cobre.

– Pai, para com isso.

– Leonel, já chega!

– Filhooooo…. Vai pra B2. B2.

O filho do quitandeiro, já ciente da insanidade do novo sogro, não se deixou abater.

– Que isso, seu Leonel? Não está me reconhecendo?

E foi em sua direção para lhe dar um abraço.

Em um último movimento desesperado – a tensão lhe fustigando os ombros – Leonel foi para o canto da sala, acuado, sem peças que lhe pudessem salvar.

Quando foi abraçado pelo jovem, Leonel ouviu uma voz ecoando em sua mente “xeque-mate”. E, em seguida, tudo escureceu.

Foi enterrado dois dias depois. Na lápide, na mais singela homenagem que se podia fazer, lia-se:

Leonel Durval

Nascimento: E1

Morte: A1


Instagram: Juliano Martinz

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