Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Dr. Capgras (3 de 3)

Cuidado com a inocente esposa dando-lhe um beijo de bom dia. Pode ser o mendigo da praça!

“Meu amor, você está estressado. Precisa de férias”. A esposa do dr. Capgras vinha dizendo isso com certa regularidade nos últimos tempos. Era verdade. Mexer com a mente de outros é bastante estressante, e após um longo período sem férias, o doutor começou a sentir os efeitos da rotina acelerada. Insônia, estresse, irritabilidade. Não parecia ser a mesma pessoa. A esposa tinha razão. Bem, pelo menos costumava ter. Até o dia em que ele desconfiou que sua esposa, na verdade, era um impostor.

Ele não podia determinar como, porquê e quando. Mas, certo dia, descobriu que sua verdadeira esposa não estava mais dividindo a cama com ele. A pessoa que agora lhe preparava as refeições, que conversava sobre seu dia de trabalho e que o chamava de “meu amor” era uma impostora.

O que teria acontecido com sua verdadeira mulher? Teria sido sequestrada? Morta? Ele não sabia. Mas em vez de dar escândalo, de pressionar a impostora para revelar sua identidade, o dr. Capgras decidiu entrar no jogo até descobrir toda a verdade. Talvez estivesse sendo vítima de um complô de grandes proporções.

Por isso, naquela manhã, quando saiu para mais um dia de trabalho na clínica, ele sorriu bobamente com o afago e o beijo da falsa esposa, e devolveu um “eu também te amo” para ela.

No caminho para a clínica, arquitetou o que faria para desmascarar a impostora. Precisaria de provas. Seria bom instalar uma câmera em casa para acompanhar os movimentos da “estranha”. E talvez contratasse um detetive particular para seguir seus passos quando ela estivesse fora de casa.

Naquela manhã, o dr. Capgras tinha apenas dois pacientes para atender. O que lhe daria tempo para concretizar suas estratégias de espionagem e descobrir o paradeiro de sua verdadeira esposa.

No entanto, ao entrar na clínica, teve uma terrível surpresa que o desconcertou totalmente.

Ali estavam seus dois pacientes, à sua espera: o sr. Fregoli e o sr. Cotard. No entanto, a constatação abismal que o doutor teve é que aqueles dois homens não eram quem aparentavam ser. Dr. Capgras tinha uma aguçada visão e podia conhecer uma personalidade somente observando o olhar. E como já conhecia as duas figuras, inclusive seus traumas e manias, o dr. Capgras podia afirmar categoricamente que aqueles dois homens ali, na sua recepção, eram impostores.

O que estava acontecendo? Quem eram essas pessoas que se faziam passar por conhecidos seus? Qual o interesse deles em enganá-lo?

Em pânico, acabou verbalizando seus pensamentos, aos gritos:

– O que querem de mim? O que querem de mim?

O homem que se fazia passar pelo sr. Fregoli tentou mudar o rumo da conversa, chamando-o de Gertrudes, abrindo os braços fingindo desespero.

– O que é isso? – continuou o falso sr. Fregoli, tentando disfarçar. – Gertrudes, o que você fez? Você se clonou? Por que isso, Gertrudes? Por quê? – Ele começava a chorar. Bom ator!

O doutor Capgras interrompeu a cena:

– Cale a boca. Você não me engana. Aliás – apontou para o calado sr. Cotard – vocês não enganam. Eu quero saber, e quero saber agora: onde está minha esposa, e onde estão o sr. Fregoli e o sr. Cotard?

– Gertrudes?

– Ao inferno com sua Gertrudes – gritou o doutor, o rosto rubro de raiva. – Se não me disserem onde eles estão e o que querem de mim, vou chamar a polícia. Quem são vocês? – Seus gritos devem ter ecoado por todo o quarteirão: – Quem são vocês????

Dois meses depois…

Os três homens estavam sentados para a terapia em grupo, no hospital psiquiátrico. Estavam em completo silêncio, apenas trocando alguns olhares repletos de ódio, desprezo e desconfiança.

Quando o doutor Samuel chegou, foi logo perguntando, com o típico sorriso amistoso:

– Como estão os meus rapazes?

O sr. Cotard deu uma risadinha:

– Como acha? Os vermes não deixaram muita coisa.

O dr. Capgras, agora um paciente, examinou o médico. Bastante ameaçador, perguntou:

– Onde está o doutor Samuel? Quem é você?

Ao que o sr. Fregoli deu um pulo da cadeira, correu em direção ao doutor Samuel e deu-lhe um abraço caloroso:

– Gertrudes? Graças a Deus!

FIM


SOBRE O AUTOR

Juliano Martinz é escritor e criador do site Literatura Corrosiva.

4 Comments

  1. Yorrana

    at

    Nossa, achei super cativante do início ao fim. Tive muitas surpresas haha, bom trabalho.

  2. Sil

    at

    Gostei do final… Gertrudes é você? rs

  3. Ana Paula

    at

    Adorei!!
    Ao final de cada “capitulo” fiquei na expectativa de conhecer mais sobre os personagens!

    Abraço,
    Ana

  4. Muito interessante o texto, ótima técnica de redação que prende o leitor. Parabéns, excelente texto!

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