Relatório da ONU aponta que, até 2040, população mundial deve chegar a 9,5 bilhões de Rafaelas
Aquele deveria ser mais um dia banal na vida de Rafaela, sem quaisquer elementos que a levassem para fora da cansativa normalidade. E teria sido se ela não tivesse se deparado com a visão mais aterradora de sua vida, logo após atravessar o saguão do prédio onde morava.
Em nenhum momento, desde que colocara os pés para fora da cama, Rafaela desconfiara do inferno que estava para vivenciar na próxima hora. E que este pressagiaria a sua morte.
Apática, tomou banho. Café da manhã. Dentes escovados. Uma roupa qualquer escolhida aleatoriamente – o trabalho que ela tanto odiava não merecia caprichos.
Da sala do apartamento até o elevador, os pés foram se arrastando. Afinal, ela carregava duas toneladas de angústia sobre os ombros. Enquanto descia, ficou de costas para o espelho do elevador – a morbidez dos seus olhos lhe causticava a alma.
Chegou ao saguão. Até ali, não cruzara com ninguém. Melhor assim. A garota de corpo recurvado, se encaminhando para o pior emprego do mundo, não tinha intensidades latentes em sua alma que lhe impulsionasse desejar “bom dia” a estranhos. Especialmente pelo fato de não lhe fazer qualquer diferença se estes mesmos estranhos estariam vivos ou mortos pelas próximas horas.
Mas quando colocou os pés na rua, a anterior Rafaela inexpressiva estarreceu-se.
A multidão indo e vindo não lhe causou qualquer espanto – estava acostumada em se deparar com centenas de seres mórbidos, toda manhã.
O fato de todas as pessoas serem mulheres poderia ter gerado alguma estranheza, mas também não foi isso o que fez seu coração falhar duas ou três batidas.
O pavor instalou-se no corpo de Rafaela no exato momento em que ela percebeu que cada uma das centenas de mulheres que circulavam ao seu redor tinham exatamente o seu rosto.
O mesmo rosto, os mesmos olhos, a mesma boca. O nariz fino. A testa estreita. Até a pinta que carregava discretamente próxima a orelha. E aquele semblante perdido que ela estava acostumada a exibir nos últimos anos. Tudo exatamente igual.
Ficou paralisada diante das centenas de Rafaelas indo e vindo, que se distinguiam umas das outras somente pelas roupas. Rafaelas a pé, Rafaelas de carro e moto, e até uma Rafaela guiando um ônibus com dezenas de Rafaelas passageiras.
Em pânico, deu um grito rouco, sufocado, chamando a atenção de duas ou três Rafaelas que passavam por ali. Uma delas perguntou:
— Você está bem, Rafaela?
Um quase infarto lhe acariciava o peito quando ela correu prédio adentro, voltando em desespero ao seu apartamento.
Suava, o suor correndo pelo seu rosto e corpo recém-banhado. Tremia intensamente. O universo parecia cambalear.
Na sala, fechou as cortinas sem olhar para fora. Pânico. Tremor. Coração desejando intensamente cessar aquele descompassado tum-tum-tum.
Ela ligou a TV e afastou-se, a ameaça desenhada na tela do aparelho: a repórter noticiava o congestionamento nas estradas e entrevistava uma policial rodoviária. A repórter tinha seu rosto. A policial, também.
Pelo celular, acessou um site de notícias e confirmou, aterrorizada, que todas as pessoas nas fotos tinham o seu rosto.
— O que… o que está acontecendo? — balbuciou.
Ela sentou-se no chão, quase desabando. Já não sentia muita coisa. Já não enxergava detalhes. Já não sabia quem era ou quem um dia fora.
E antes que desmaiasse, ainda ouviu a policial Rafaela advertir as motoristas Rafaelas para que não bebessem antes de dirigir.
at
Consigo ver a possibilidade de trabalhar com a questão dos padrões estéticos estabelecidos pela sociedade. Padrões estes que têm feito as pessoas todas estarem buscando a mesma imagem, seja através da harmonização facial, seja por uso de anabolizantes…
at
O que são as Rafaela ?
at
Estou gostando muito dos textos deste autor.
parabéns, escreve bem!
at
Obrigado pela visita e pelas palavras, Myrian.