Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Universo Rafaela

Aquele deveria ser mais um dia banal na vida de Rafaela, sem quaisquer elementos que a levassem para fora da cansativa normalidade. E teria sido se ela não tivesse se deparado com a visão mais aterradora de sua vida, logo após atravessar o saguão do prédio onde morava.

Naquela manhã cinzenta, a apática Rafaela tomou seu banho. Café da manhã. Dentes escovados. Uma roupa qualquer escolhida aleatoriamente – o trabalho que ela tanto odiava não merecia caprichos.

Da sala do apartamento até o elevador, os pés arrastavam. Afinal, ela carregava duas toneladas de angústia sobre os ombros. Enquanto descia, ficou de costas para o espelho do elevador – a morbidez dos seus olhos lhe causticava a alma.

Não cruzou com ninguém até chegar ao saguão. Melhor assim. A garota de corpo recurvado, indo para o pior emprego do mundo, não tinha intensidades latentes em sua alma que lhe impulsionasse desejar “bom dia” a estranhos.

Quando colocou os pés na rua, a inexpressiva Rafaela estarreceu-se. Isso aconteceu no exato momento em que percebeu que cada uma das dezenas de mulheres que circulavam ao seu redor tinham exatamente o seu rosto.

O mesmo rosto, os mesmos olhos, a mesma boca. O nariz fino. A testa estreita. A pinta que carregava discretamente próxima a orelha. E até aquele semblante perdido que ela estava acostumada a exibir nos últimos anos. Tudo exatamente igual.

Ficou paralisada diante das dezenas de Rafaelas indo e vindo. Rafaelas a pé, Rafaelas de carro, e até uma Rafaela guiando um ônibus com várias Rafaelas passageiras.

Em pânico, deu um grito rouco, sufocado, chamando a atenção de duas ou três Rafaelas que passavam por ali. Uma delas perguntou:

— Você está bem, Rafaela?

Um quase infarto lhe acariciou o peito quando voltou em desespero para o seu apartamento.

Na sala, fechou as cortinas. Pânico. Tremor. Coração desejando intensamente cessar aquele descompassado tum-tum-tum.

Ela ligou a TV e afastou-se, apavorada. A ameaça também estava desenhada na tela do aparelho: a repórter noticiava o congestionamento nas estradas e entrevistava uma policial rodoviária. A repórter tinha seu rosto. A policial, também.

— O que… o que está acontecendo? — balbuciou.

Sentou-se no chão, quase desabando. Já não sentia muita coisa. Já não enxergava detalhes. Já não sabia quem era ou quem um dia havia sido.

E antes que desmaiasse, ainda ouviu a policial Rafaela advertir as motoristas Rafaelas para que não bebessem antes de dirigir.

4 Comments

  1. Paula Franco

    at

    Consigo ver a possibilidade de trabalhar com a questão dos padrões estéticos estabelecidos pela sociedade. Padrões estes que têm feito as pessoas todas estarem buscando a mesma imagem, seja através da harmonização facial, seja por uso de anabolizantes…

  2. Karolaine

    at

    O que são as Rafaela ?

  3. Myrian Ramos

    at

    Estou gostando muito dos textos deste autor.
    parabéns, escreve bem!

    • Juliano Martinz

      at

      Obrigado pela visita e pelas palavras, Myrian.

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