Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Merchan

Na era da geração de conteúdo online, são muitas as oportunidades para fazer publicidade de produtos e serviços de forma discreta. Às vezes, nem tão discretas assim

Plínio Macedo. O nome não dizia muito. A vida dele, então, nem se fala. Não tinha lá muitas expectativas. Até tinha um bom salário, mas o tédio era tamanho que lhe chegava roubar o fôlego.

Cumpria horários, dizia sim senhor dezenas de vezes por dia, conversava só o essencial com esposa e filha. E entre uma coisa e outra, sempre esquecia de sua rotina embrutecida, ao mergulhar suavemente no mundo do verdadeiro sabor de um café Melitta. Exigente na apreciação de sua bebida favorita, Plínio sempre fazia questão de tomar o Sabor da Fazenda, com o seu tradicional sabor de café moído na hora.

Naquela manhã, após tomar o melhor café do Brasil em sua xícara Touch da Nespresso, Plínio deu um beijo automático em sua esposa e lhe disse um “eu te amo” mais automático ainda. Nem reparou na filha deitada confortavelmente em um sofá Nepal, de 3 lugares, com assento retrátil, assistindo TV. Por isso, sem dizer-lhe “bom dia”, saiu emudecido pela porta. A cabeça dele estava envolvida pelas obrigações que lhe aguardavam no escritório, e no chefe psicótico que infernizaria seu dia pelas próximas 10 horas. Aquilo desanimaria qualquer miserável.

Plínio estava decidido a mudar de vida. Não poderia continuar daquele jeito, ou acabaria se jogando do décimo andar. Era necessário uma mudança. E drástica. Havia várias opções, é verdade. Curiosamente (ou não), todas elas iniciavam com o mesmo passo: pedir demissão.

Talvez por isso ele conseguiu esboçar, com muito esforço, aquele discretíssimo sorriso nos lábios, ao entrar no elevador. Tão discreto que a vizinha do 43, que naquele dia presenteava as narinas de Plínio com o frescor delirante do majestoso Perfume Lady Million, nada percebeu. Plínio ainda era o vizinho sombrio com semblante de pedra.

Na recepção, o porteiro do prédio, que era cego de um olho e era uma das poucas pessoas que gostava de Plínio, ouvia a rádio CBN, para se manter sempre informado com notícias de primeira mão.

Plínio devolveu, sem qualquer entusiasmo, o bom dia do porteiro e saiu do belo edifício que era mais uma das maravilhosas obras da construtora e incorporadora Gafisa.

O agradável calor do sol daquela manhã, mesmo atravessando milhões de quilômetros de espaço para acariciar sua epiderme, não trouxe nenhuma sensação de paz e conforto ao homem.

Ao atravessar a rua, ainda envolto com a rotina corrosiva de mais um dia de trabalho banal, Plínio não percebeu o caminhão em alta velocidade. A explosiva freada não foi suficiente para diminuir a violência do impacto que jogou o corpo de Plínio vários metros a frente. Um baque seco que prenunciou gritos e murmúrios de desespero de todos ao seu redor.

Em meio ao turbilhão de pensamentos e sentimentos confusos que o abordaram segundos antes de sua morte, Plínio teve um incrível sensação de paz e felicidade. Com os ossos todos quebrados, foi invadido por uma sublime gratidão, ao se convencer de que nunca mais precisaria aturar seu chefe psicótico.

MORAL DA HISTÓRIA: A vida pode lhe trazer inúmeras surpresas, mas hálito verdadeiramente fresco, somente com creme dental Colgate.

2 Comments

  1. María Cristina Ronda

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    Sou argentina, também professora de Português, embora há tempo não pratico esta bela língua. Além disso, conto contos e sempre estou procurando algum gostoso. Não tenho dúvida que o melhor sempre encontro no Brasil. Falo de F Sabino y Veríssimo. Gostei demais desse conto!!!!!!! Vou traduzir e contar, na certa. Meus cumprimentos para o autor. Vou continuar lendo sempre!!!!!

  2. Lucas

    at

    Ótimo texto, muito engraçado.
    Durante o texto eu ficava esperando por cada merchan e ria toda vez que aparecia um, sem falar na história do personagem que também é muito boa.
    Enfim, conheci esse blog a mais ou menos um ano ou mais e ele está cada vez melhor.

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