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O Palhaço Denis

Tinha lido em algum livro, em qualquer um daqueles que empaturravam sua biblioteca particular: pessoas mal-humoradas morrem mais cedo. Sorrisos contribuem para uma vida mais satisfatória e (a parte que realmente lhe interessava) muito mais longa.

Satisfação na vida, ele tinha. Dinheiro, de sobra. Uma carreira de sucesso para deixar familiares orgulhosos, e amigos morrendo de inveja. Mas agora, beirando o infausto abismo dos 40 irreversíveis anos, sentia o elixir de sua vida escoando numa enxurrada ladeira abaixo. O dinheiro lhe regava a vida com prazeres, mas tinha uma nítida impressão que, muito muito em breve, seria encontrado por uma arrumadeira de um hotel qualquer, espatifado na cama, os olhos arregalados, a língua esbranquiçada e seca saltada pela boca flácida. Era seu pesadelo que a cada dia, parecia assumir contornos, cor e fragrância. Melhor deixar a amiga hostilidade de lado e zelar pela saúde.

Os empregados estranharam. Os amigos desaprovaram. E a família achou que estava louco. O estatuário mal-humorado Denis agora sorria, e dava tapinhas nas costas daqueles a quem nunca dirigiu olhares. No começo, limitou as mudanças apenas ao seu comportamento externo, atos de felicidade elaborados e cuidadosamente executados. Mas não demorou muito, e expelia bom humor em cada gesto, suor e pensamento. Da insistência, nasceu a prática. O caos transmutou-se em ordem.

– Não se esqueça do tênis de amanhã, Denis. – Disse, um dos poucos amigos, o corpo recurvado sob o peso do estresse e da vida agitada e inquietante.

– Hum, bom tocar nesse assunto. Preciso cancelar. Amanhã tenho um compromisso.

– Se for com mulher, está perdoado.

– Um pouco longe disso. Preciso ir ao hospital.

– Hospital? Quem está doente?

– Algumas crianças. Várias, pra ser mais específico. Câncer. Estão precisando de apoio.

– Ah, sei… E, vai doar quanto?

– O que tenho de melhor: meu tempo. Até já comprei a roupa de palhaço.

– Roupa de…? Denis, você não vai fazer o que estou pensando que você vai fazer, né?

– Ah, qual é, Alfredo? Que mal há em fazer uma criança sorrir?

– Cara, você tá me assustando.

– Você devia experimentar. No começo era para ser apenas alguns sorrisos, um pouco de bom humor na corrente sanguínea. Mas não é que acabei pegando gosto pela coisa?! Me sinto outro homem.

– Você é outro homem, disso não tenho dúvidas. Bem que sua mãe falou que você não andava bem.

– Em seis meses, faço 40 anos. Mas acredita que estou me sentindo como um cara de 20?

– Ok, tudo bem, mas… roupa de palhaço??? Sinceramente, eu prefiro tênis. Isso sim me faz me sentir com 20 anos.

No dia em que Denis completou 90 anos, morreu em seu apartamento. No seu velório, não havia parentes; tampouco qualquer um dos seus antigos amigos estavam presentes. Todos eles, sem exceção, já haviam sido apresentados aos vermes, décadas antes. No caso de Alfredo, durante uma partida de tênis, infartado segundos após um ace fabuloso.

Mas, embora nenhuma destas pessoas pudessem estar presente, o velório de Denis estava abarrotado.

E entre a multidão, estavam as anônimas, porém, gratas crianças do hospital infantil, hoje pais, avós e bisavós, todos intensamente agradecidos pelo dia em que o palhaço Denis resolveu entrar e mudar suas vidas.

(Crédito Foto: Silvia Cosimini)

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