Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

MINHA JOVEM IDOSA

Caiu-lhe os pesadelos como um manto sobre a vista fraca. Viu-se vaga, flores ao redor. Cheiro de vela. Cheiro de um tudo nada lhe dissecando a alma calejada. Levantou-se, sôfrega. Passos cuidadosos aqui e ali. 80 anos ou pouco mais lhe rasgando tecidos. Lacerando músculos. O sangue se esforçando – uma volta a mais. O ar voltando a passear pelos seus pulmões entregues.

Saiu até a calçada, apoiada. Cansada. Ferida. Caminhou, sem ser notada. Apenas mais uma alma perdida e enfastiada. O aborrecimento desenhado nas marcas escuras sob seus olhos. O olhar tentava focar. Fosco. Foco. Fora de hora. E de agora em diante, uma luta para respirar.

Minha Jovem Idosa

Metros a frente, e sentiu vontade. A visão ainda desacreditada. Mas um desejo novo, norteado por um guia estranho. Um anseio que lhe puxava, prometendo-lhe uma oferta, ainda que um sorriso tímido no final.

Uma praça. Beira-mar. Um calçadão. Acelerou os passos. Inspire. Expire. Profundamente. Pro fundo da mente, do corpo, das sensações. Inspire. Expire. Mantendo o ritmo. O ritmo que aprendia da nulidade. O frescor que recebia da nova verdade. E que lhe compensava a crença no prometido amanhã.

Distraiu-se. Era o mar. Soava. Ecoava. Arremetia sobre ela, longe perto. Por que havia perdido o desejo de viver? Por que havia se deixado levar pelo caos, pelo infortúnio? Por quê?

Não encontrou respostas. O que viu foram seus pés e pernas num ritmo acelerado. Corria, como nunca correra. O vento em seu rosto. A libido numa força propulsora lhe formando pensamentos, desenhando argumentos. Sentiu um beijo. Um afago em seus cabelos. Braços em seus abraços. A juventude lhe ditando regras. A vivacidade nos seus poros dilatados.

Parou para recuperar o fôlego. Não fez caso, não por acaso, em frente a uma loja de brinquedos. Viu bonecas. Desejou-as. Tomá-las nos braços. Brincar de ser mãe. Começou a saltitar. Cantarolou alguma canção infantil. E voltou a correr, dessa vez mais lenta, morosa. Distância vagarosa. Logo as pernas começaram a se embaralhar. Sincronia, onde foste parar? Melhor caminhar. Ainda assim, dificuldade. Ainda assim, tênue confiança.

Chegou em casa. Subiu as escadas, relutante. Colocou-se de joelhos. Engatinhou. Ouviu sorrisos. Risadas. Palavras de incentivo. Sua boca delicada, sem dentes, tentando morder um brinquedo qualquer. Pegaram-na no colo. Uma cantiga de ninar. Balanços aconchegantes. O sono veio sem demora. Fechou os olhos.

E voltou a dormir.


“A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18”
(O Curioso Caso de Benjamin Button)

1 Comment

  1. marcelo smith

    at

    Juliano, essa tema e bastante interessante nos leva a refletir como e difícil entrar na terceira idade em
    nosso país a onde ser idoso e sinônimo de ser dispensável , quando o certo era se aproveitar o seu “co-
    nhecimento” e sua área de atuação para construirmos uma nação melhor!!!

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