Há duas questões que as canções românticas jamais foram capazes de responder: O amor existe? E existe vida em Marte?
Eu, Laura
A cidade cobre meu corpo de cinzas. E nos prédios, um frio gélido. A parede coberta de um lodo verde, cinzento, impregnado, porca tolice. Lado a lado, sem harmonia, prédios que se desconhecem. Erguem-se sem considerar a harmonia estética, arquitetura tosca ao redor.
Os prédios me representam. Esta sou eu. Minha altura: dois andares – nada imponente. Com vista para um mar de concreto e, ao fundo, um oceano de lixo em terreno baldio. Me chamo Laura. É o que diz o RG. Mas enquanto caminho anônima na multidão desconhecida, tanto faz o rótulo. Os outros edifícios não me notam. Que diferença isso faz? Que diferença isso fez? Mal os noto também. São apenas prédios erguidos desordenadamente, desalinhados como eu. Outros edifícios cobertos de limo. Frios, inamados, solitários desenganos. Posso reconhecer a solidão espelhada em cada um dos seus olhos-vitrais.
No silêncio noturno, choro. Às vezes, solenemente, lágrimas que me deixam de forma discreta. Outras vezes, entrego-me aos prantos. Lágrimas que inundam e destroem meus móveis. Uma enchente. Tempestades lacrimais no fim de uma tarde de verão.
Mas ninguém vê. Ninguém nunca viu. Nas fotos das redes sociais estou sempre sorrindo. As fotos registram apenas personagens. A realidade, porém, é a morbidez de prédios desalinhados, estáticos, que apagam o céu azul.
Será que existe o amor? Será que ainda serei amada? Será que existe vida em Marte? Em meu pequeno apartamento, as paredes estão carregadas de tantas perguntas ácidas, escuras, corroendo o reboco. Interrogações que ecoam no vazio, vazio, vazio. Verdadeiramente amada? Apenas por Billie, a pequenina bola de pelo que festeja minha chegada e se deprime quando mergulho na multidão de frios semelhantes.
Prédios desalinhados me representam. Meus pés trôpegos se arrastam e, por vezes, mal sei para onde vou. E faria diferença se ali nunca chegasse?
No caminho, ainda pergunto: Existe amor? Existe vida em Marte?
Eu, Mateus
Sou a única pessoa consciente no mundo. As demais, apenas projeções em bits e bytes, construídas e arquitetadas em linguagem de programação. Programadas para sorrir em HTML. Programadas para chorar em Java. Mas, na maioria das vezes, ocorrem erros nas linhas de códigos, e elas simplesmente não exprimem sentimento algum.
Exceto em fotos. Um segundo antes, frias. Um segundo depois, frias. Mas no instante em que o flash ilumina o ambiente, expressam alegria. A fração de um momento mascarando o instante de uma brevidade. Um sorriso, um milésimo de ruptura no tempo-espaço, tempo-escasso.
Desligo o computador, após conversar com muitas projeções byteanas. Depois, arrasto-me até a cama. Encolho-me no escuro. Posição fetal. Um desejo de voltar ao útero onde, um dia, me senti seguro. Fecho os olhos.
Mas como o único ser consciente do planeta, não sei como dormir.
Eles, Laura e Mateus
Mateus tem insônia. Deita-se, mas seu corpo se revira um milhão de vezes no lençol amarfanhado. Por isso, na maioria das vezes, dorme de dia e passa a noite perambulando entre suspiros desconsolados na web e copos de café.
Mateus tem dores no indicador da mão direita por causa do mouse.
Mateus tem medo do olhar das pessoas.
Mateus tem uma camiseta com os dizeres “Love in Mars”.
Agora, após rolar na cama 47 vezes, Mateus se levanta. O celular marca 3:02. Ele pensa em algo para comer. Mas a geladeira está vazia. Mais um, dois, três quilos de desolação em seus ombros. Resolve ir até uma loja de conveniências, aberta 24 horas por dia.
Pé ante pé, ele sai – o único ser humano mergulhando no meio de projeções programadas em C++ para serem insones.
Na loja de conveniência, Mateus se assusta: depara-se com uma linda garota, um certo olhar triste, mas de impacto tamanho que lhe rouba o fôlego. Ela olha com curiosidade para sua camiseta. Depois o encara, e lhe sorri. Não um sorriso programado. Nenhum código Perl ou Visual Basic nas linhas docilmente recurvadas de seu sorriso. Ela, suavemente, humana.
Laura tem insônia. O que lhe faz bocejar durante todo o dia. Seu recorde: 63 bocejadas ao fim do expediente. Entre lágrimas e navegações despretensiosas pela internet, ela sai durante a noite, deparando-se com outros edifícios amargurados. Olhos cerrados por cortinas espessas.
Laura faz caretas diante do espelho.
Laura tem medo do escuro.
Laura sempre se imagina no lugar da atriz principal das comédias românticas.
Agora, perambulando pela noite, suas pernas são frágeis colunas e vigas se deslocando com esforço, ela chega a uma loja de conveniência. Pensa em algo para comer. O limo que cobre seu corpo pede por alimento. Ao entrar, ela se depara com algo diferente. Em meio a tantos edifícios, monumentos cobertos de pintura velha, fios e umidade, ela encontra um rapaz de olhar sincero, uma curiosidade sublime, uma inocência poética. Ele não é estático, nem está coberto de mofo. Usa uma camiseta. Love in Mars.
Laura lhe sorri.
Ele lhe devolve o sorriso.
Semanas depois, estariam se amando. Amor verdadeiro. Mas algo ainda incomodaria Laura até o fim de sua vida: Será que existe vida em Marte?