Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

Alana, Minha Monomania

Ao tentar repetir as circunstâncias que me trouxeram para este confinamento, este refúgio para dementes, acredito que acabarei me contradizendo. Não que seja algo proposital, um orgulho inexorável envolvendo meu peito e a recusa em admitir a culpa. Mas é apenas um letárgico estado da minha mente. Um pulsar elétrico da insanidade em minhas veias. E quando tento dar um passo atrás em minhas memórias, recordar os últimos momentos, meus pés só encontram o irreal e parte de minhas entranhas. É a mente sempre pregando peças, nos convencendo de que somos capazes de distinguir as fantasias do real. Mas é aí que indivíduos se perdem em um labirinto em plena linha reta. E você me olha com um olhar estranho, meneia a cabeça, fingindo não entender o que estou dizendo, se recusando a perceber que somos ambos a salivar.

Meu nome é Petrorius e sou um sonhador e um visionário. Cresci em um ambiente de torpor ácido. Um mundo agitado de pessoas apressadas que se pisam em ruas aglomeradas. A vizinhança era a pior companhia: alcoólatra, insanos, suicidas, casais que se destruíam todos os dias e renasciam no próximo alvorecer. Por isso, minha melhor companhia sempre foi a acidez dos livros de John Fante e a narrativa alucinante de Jack Kerouac. Não se pode crescer com estes livros e ser alguém tido como “normal” pela sociedade, embora, eu ainda não tenha conseguido determinar o que signifique ser normal.

Não me questione. Eu costumo improvisar as respostas.

Decidi sair de casa quando o senhor Valmor, do andar de cima, ateou fogo em si mesmo. Achei que aquilo deveria ser um sinal. Algo como: se não se mover, você será o próximo. A velha história das pedras que rolam não criam limo. Então melhor se jogar ladeira abaixo e ver onde esta porcaria vai dar.

Poderia ter sido um passo para o sucesso ou um golpe desastroso. Como dimensões paralelas que se constroem diante das muitas opções que temos a nossa frente. Cada escolha um resultado. E deste resultado, outras opções surgem. Várias trilhas, vários labirintos. E não importa o quanto você pense, você nunca escolherá a melhor. Se acha sua vida boa, acredite, ela poderia ter sido melhor.

Alana, Minha Monomania

E entre escolhas e escolhas, planos e labirintos, fui trilhando uma série de enredos e tramas que me trouxeram até a frente da casa de Alana. Agora começo a entender. Estou no canto deste quarto frio, com meus olhos lânguidos passeando pela esclera, por culpa de Alana.

A casa dela. O granito escuro tentando inutilmente refletir a luz do sol naquela tarde de não sei quando. A porta entreaberta. E Alana no meio da sala, vestida de preto, fazendo sinal para eu entrar. Ainda me lembro do seu sorriso falso… Traidora!

Um enfermeiro acaba de vir até mim. Aplicou uma injeção qualquer em meu braço. É que fiquei agressivo. Sempre que me lembro de Alana começo a gritar insanamente e destruir tudo o que está ao meu redor. Como não havia muito o que destruir – só uma cama exorbitantemente pesada – acho que destruí os ossos do meu pé na parede. Ou esta maldita dor lancinante seja apenas um alarme falso de minha memória, tentando me distrair, tirar meu foco.

O enfermeiro já foi. Me deixou o lápis e o papel. Mas aquela porcaria que me aplicou no braço está me deixando abobado. Um caráter fúnebre naquelas grades, um vácuo no peito, abrolhos crescendo ao meu redor. Estou cansado… tão cansado.

De volta. Horas… Que horas são? Não se percebe muita coisa dentro deste quarto. Estou todo mijado. Este universo caótico. Este fedor. Abram as cortinas dos meus olhos cerrados.

Alana. De uma curiosidade em descobrir o que aqueles olhos escondiam, nasceu um desejo irracional de viver intensamente cada respiração dela, cada pensar, cada desistir. E foi o que me trouxe até este confinamento. Alana, minha monomania. Foi o que o psiquiatra me disse quando vim para cá. Mas não acredito em psiquiatras. Prefiro o julgamento dos meus leitores. Embora até goste do termo: monomania. Soa inteligente. O que me tornaria um monomaníaco. Não, agressivo demais. Eu preferiria monômano.

De qualquer forma, acho que preciso de um julgamento mais apurado. Não se pode ser julgado por um velho de barba branca, que passa a vida a receitar drogas que imbecilizam lunáticos como eu. No meio da minha névoa, e da dor agonizante em meu pé, ainda vejo o velho com seu olhar hediondo cascateando por cima dos seus óculos embaçados, e balbuciando a sentença que me pareceu trovões em uma tarde de verão: que eu precisaria ficar enclausurado neste hospício para tratar minha monomania. Monômano… Alana, sua falsa!

Ela era apenas uma frequentadora dos mesmos becos que eu. Uma garota no alto dos seus vinte e poucos anos, um mistério envolvente em cada penumbra do seu olhar. Quando a encontrei a primeira vez, ela lia Chuck Palahniuk. Eu perguntei que livro era. Ela meio que me olhou como um faminto que acaba de encontrar um bom pedaço de carne no meio do lixo: vale a pena dar um passo a mais? Ela disse que era o livro da infância dela. Cá entre nós, não se pode crescer lendo Chuck Palahniuk e não se tornar uma criatura delirante. Para falar a verdade, me esqueci de dizer que li todos os livros dele.

Alana era a beleza refulgente em uma máscara de tédio. Parecia a perfeição desconstruída pela inércia de um mundo insano. E eu era o grande reformador. Eu daria um jeito em seu destino. Meu objetivo era conceder um objetivo à vida de Alana. E ela ainda me presentaria com a solução do mistério do que havia por trás daqueles olhos.

O espelho sempre mente para os belos e os sábios.

Os dias que se seguiram foram tentativas fúteis de quebrar a abóbada que envolvia sua mente. Com minha disposição tradicionalmente receptiva ao ouvir belas mulheres enunciarem suas palavras, me prendia a cada detalhe quando ela me contava frações de sua vida, porém, sem jamais revelar o todo. O mistério. O que ela escondia.

Homem sentado no canto de um quartoAcho, no final das contas, que o que ela escondia era o desejo de me ver dentro daquele hospício. Um estudo vivo para sua tese de psiquiatria. Ela estava no último ano. E o professor dela era um velho de barba branca e com um olhar hediondo. Malditos!

Confesso que deveria ter me afastado, que deveria ter entendido as entrelinhas e dado no pé. Principalmente quando vi os dois juntos. E se você estiver um pouco menos dopado que eu, vai entender o que quero dizer com “juntos”. Inferno! Se eu tivesse aprendido com meu passado – o odor ainda estava lá – poderia ter evitado um bocado de problema.

Mas ela era minha obsessão, meu objetivo. O porquê dar o passo seguinte, se é que me entende. Uma forma vaga que se desenhava no horizonte, sem perder sua aura sinistra e ameaçadora. E os tolos a ignoram. Por isso, ignorei.

A casa dela foi minha última parada, antes do fim. O granito escuro. Afluência de cheiros extravagantes em um jardim infestado de todas as cores. Intoxicado com aquele fedor maluco. Era um lugar trivial. Real. Mas ainda assim, irreal.

Quando ela fez sinal para entrar, entrei. Na verdade, era a terceira vez que eu entrava ali. Nas duas primeiras, não fui convidado. Só me lembro da umidade que havia ali dentro. Um lugar úmido, mofado, bolor nas paredes. Isto não é um falso alarme. Isto não é um teste.

E minutos, horas, dias (dane-se) depois, estava eu em frente ao affaire da morena mais linda e misteriosa que já conheci. O cara devia ter uns 250 anos e estava de caso com sua aluna. Alana. E eu, o rato de laboratório. Alguém me faz o favor de explicar qual o nome desta porcaria de planeta?

Esperem…

O enfermeiro entrou novamente. Tomou meu papel e lápis, apesar dos meus quase-protestos – é assim que defino meu balbuciar enquanto fico babando e me arrastando como uma lesma. Eu teria pulado no pescoço dele, como já fiz outras vezes. Mas a porcaria que ele meteu em minha veia bateu legal. Acredite: se eu fosse atacado por um recém-nascido agora, tomaria uma surra.

Bem, agora não tenho mais como registrar meus pensamentos, e minha análise sobre como vim parar aqui. Alana e o homem das cavernas devem estar se divertindo com o que escrevi, pensando em quantos anos ainda vou entretê-los de dentro de minha cela. Com vocês, o rato Petrorius! A mim, resta uma maldita dor em meu pé, que acredito definitivamente estar quebrado, e meus pensamentos inquietantes, peculiares e decadentes. Se ainda está lendo alguma coisa, muito embora eu tenha parado de escrever, talvez se convença de que seja hora de reconhecer que ambos estamos salivando.

4 Comments

  1. Caetano

    at

    Parabéns crônica bem construída e envolvente.

    • Juliano Martinz

      at

      Obrigado, Caetano!

  2. Aralys Silva

    at

    É fascinante como a história se desenvolve…amei <3

  3. thimoteo

    at

    adorei o jogo que fez com o tempo: presente, passado.
    mais uma vez achei 10!

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