Corrosiva

Crônicas corrosivas e gestos de amor

UMA FRASE TRISTE, POR FAVOR

Escritora compulsiva e com um acúmulo de distúrbios emocionais, tinha o hábito de começar a escrever seus livros sempre com uma frase trágica. Independente do desenrolar da história, a primeira frase, precisava de um impacto lúgubre. Sempre fora assim. Possuía 7 romances publicados, todos com o desencanto no princípio.  Como sua vida, diria.

Seu primeiro romance, já demonstrava isso. Primeira frase, estatelava:

Camila Helena sabia, daquele momento em diante, que verteria lágrimas, novamente, quando a vida voltasse a acordar mal-humorada, e resolvesse lhe tirar as últimas migalhas que lhe restaram”. 

Uma Frase Triste Por Favor

Animada com a ideia, no segundo repetiu a dose:

“A única coisa que lhe restou daquele incêndio, foi a visão de um dos seus olhos e parte do seu vestido de luto”. 

No terceiro, apelou:

“A cabeça ainda rolava, vítima da impiedosa guilhotina, quando a agora viúva do pobre infeliz sentiu a bolsa estourar”. 

Assim se sucederam, um a um, até o último romance. Mas neste dia, as ideias lhe fugiam. Não conseguia criar nada, nem mesmo desatentas crônicas tristes. Suas ideias pareciam perdidas em algum labirinto mental, aquém de sua criatividade, uma inferioridade nada familiar. Seria a crise da meia-idade? Crise da falta de criatividade? Ou talvez crise de uma vida em crise?

Recorreu ao telefone, ligando para a amiga. Exposto o problema, recebeu o que considerou até indelicada sugestão:

– Comece seu livro com uma frase bonita, de amor.

Chegou sentir-se zonza. Textos humorísticos ou motivacionais sempre estiveram totalmente fora de cogitação.

– Você tá louca? Vou negar toda minha identidade e talento com uma frase bonitinha e melosa?

– Clarice, não exagere. Uma escritora precisa se desafiar. Você nunca muda o começo dos seus livros porque tem medo de experiências novas.

– Eu não vejo dessa forma.

– Mas eu e todos nossos amigos, sim. Você pisou em terreno firme, e agora vive com medo de continuar a caminhada. O mundo gira, minha amiga. Criatividade se constrói com mudanças, não com essa mesmice.

– Você acha mesmo?

– Claro!

Estava convencida. Desligou o telefone e voltou para frente do computador. O lacônico cursor ainda esperava como que dizendo: “E aí, vai me botar pra trabalhar ou não?”. Pensou numa primeira frase bonita, melosa, tola, cute-cute. E escreveu:

“E foram felizes para sempre…”

De repente, sentiu uma lufada de criatividade romper-lhe os tecidos cerebrais. Seu peito ardeu de paixão, os dedos se afirmaram sobre o teclado, e percebeu que viraria a madrugada escrevendo, escrevendo e escrevendo.

Deu enter, e iniciou o segundo parágrafo:

“Teriam sido, melhor dizendo, se o assassino em série não tivesse lhes arrancado os corações e cozinhado os mesmos ao molho mostarda”.

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(Crédito Foto: Ginny Austin)

7 Comments

  1. Ilana da Silva Sodré

    at

    Nossa kkkkk
    Comecei lendo a pouco suas crônicas, mas essa foi a melhor de todas.
    Um hábito entre alguns escritores, essa busca eterna pelo texto perfeito (que no final acaba sendo mais do mesmo).
    Adorei!!!

  2. Gabriela dos santos

    at

    Bom conteúdo. quero mais!!!!

  3. Vanessa almeida

    at

    Gostei muito,são frases maravilhosas.

  4. Marcio Ribeiro

    at

    Na vida temos sempre ideais aos quais nos identificamos, e por mais que mudamos nossas essência sempre voltamos as origens.
    Um início só e um bom início se tiver fim.
    Belo texto.

  5. Alan

    at

    Ouvir belas frases faz bem à alma.

  6. O melhor! Rsrs

  7. Bom site. Gostei.

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